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segunda-feira, 20 de junho de 2011

LOST - EU TAMBÉM VI (UMA PARTE PELO MENOS) TERCEIRA PARTE


Criadores da Série: J. J. Abrams, Jeffrey Lieber e Damon Lindelof
Roteiro do episódio: David Fury

*O post ficou grande, então quebrei ele em três partes. Prometo fazer posts mais curtos daqui para frente, mas queria encerrar o assunto Lost na minha cabeça. E garanto que quem ler, vai achar que valeu a pena.
**Esse post contém SPOILERS do episódio Walkabout (quarto episódio) de Lost

No último flashback Locke já está prestes a sair em viagem para o “mundo selvagem” que ele tanto queria confrontar, mas a pessoa que cuida do embarque dos turistas não deixa ele entrar no grupo. E nesse momento você descobre uma informação que havia sido omitida brilhantemente desde o começo dos flashbacks: Locke era um cadeirante. À partir daí é inevitável por parte do espectador fazer uma revisão de tudo o que foi mostrado no episódio.

Esse homem, que durante o tempo todo, foi visto por nós como um funcionário medíocre, um nerd, um loser e mais importante, sempre sendo visto sentado e nunca andando, toma uma outra proporção. Ele enriquece novamente, como nas outras vezes em que ouve uma reversão de expectativa, mas dessa vez a reversão é completa, já que a revelação de personagem é imprevisível e radical. Se antes, o que o impedia de fazer a tal viagem era decorrente de um caráter pouco ousado ou falta de motivação e expediente, agora nos vemos diante de alguém que praticamente queria o impossível e acreditava nisso.

A sua ingenuidade se torna algo positivo, torna-se uma mostra suprema de fé de alguém que está enfrentando um conflito dificílimo de lidar. E como que premiando essa fé, no episódio voltamos para o tempo presente, onde o “adeus” aos mortos está sendo feito perto do avião em meio às chamas do fogo que vai queimar os corpos. O que ninguém além de Locke sabe é que existe um morto a mais dentro daquele avião, representado pela cadeira de rodas vazia observada pelo novo Locke que renasceu na ilha. John Locke, o cadeirante, o funcionário, o nerd de meia-idade, o cliente de disk-sexo, morreu naquele avião (mesmo por quê acho que não existe disk-sexo na ilha) e um novo John Locke, que vai se definir nas seis temporadas subsequentes de Lost, acabou de nascer. Seu batismo foi o momento em que conseguiu capturar o porco do mato, coisa que seria impossível para ele antes da queda do avião. Quer dizer, duas novas encarnações se acrescentam às outras que já enumerei: a de cadeirante e a de homem que renasceu, um verdadeiro Lázaro que queria o impossível e graças aos poderes fantásticos da ilha, conseguiu. Com isso, ele ganha contornos heróicos, sem precisar ter feito nenhum “heroísmo”. Graças, antes de mais nada, ao nosso ponto de vista, que mudou em relação a ele. Por quê descobrimos sua verdadeira motivação para querer caçar o porco ou para querer fazer a viagem.

E mais do que isso, prova que o EFEITO obtido através desse episódio em seu clímax, tem como centro uma revelação de personagem que desvenda motivações e não a resolução de um conflito dramático de trama (mesmo por quê o “conflito final” com o porco não foi mostrado e a viagem de Locke para a Austrália torna-se um anti-clímax). Conferindo os outros episódios da primeira temporada, as pessoas poderão ver que táticas parecidas foram usadas (com variações) em grande parte dos outros episódios, onde revelações de personagem colocadas estrategicamente em momentos cruciais em que as linhas narrativas principais dos episódios se juntavam são os verdadeiros motivos pelos quais a emoção e a satisfação com o episódio são sentidas por quem está vendo. Não é simplesmente vencer alguém, matar alguma coisa, descobrir um mistério, achar um culpado ou coisa parecida, é ter uma nova visão sobre um personagem, ver que ele é mais rico do que parece, entender suas reais motivações e á partir daí sentir empatia com ele ou com a riqueza de comportamente que ele possui. Isso leva à emoção, dando ao episódio um final, mesmo que não calcado totalmente na resolução dos conflitos apresentados. No cinema isso não é novidade, mas era mais raro na TV americana no final dos anos 90 e começo do século XXI.

Nesse sentido, Lost, nessa primeira temporada, se junta a outras séries (como The Wire, The Sopranos ou Deadwood) que inventaram um jeito próprio dentro do formato televisivo americano de criar uma narrativa seriada que não se apóie totalmente nem no formato de “cenas dos próximos capítulos” e nem no formato que se apóia no fechamento de uma trama de moldes clássicos para acabar cada episódio. Na verdade essas séries que citei usam um formato “misto”, onde a narrativa é seriada como no exemplo de “cenas dos próximos capítulos” já que não há o fechamento de uma “trama” (quando eu falo trama quero dizer trama em “moldes clássicos”) por episódio e sim o fechamento de um desenvolvimento de personagem ou a inclusão de uma cena que crie um efeito satisfatório (positivo ou negativo) e dê a impressão de fechamento para as linhas narrativas (esse último exemplo é muito usado por The Wire). Mas seja de um jeito ou de outro, consegue-se compor um fechamento, já que há um clímax emocional. No caso de Lost sempre havia uma linha narrativa no presente e outra no passado em relação a um personagem e em cima disso é que esse clímax era criado. Uma forma mais sofisticada e mais específica, própria da série, de construir uma estrutura.

Se nas outras temporadas o urso polar, o monstro de fumaça, os ganchos de trama e o modelo “cenas dos próximos capítulos” tomaram conta dos episódios não importa; se as revelações de personagem se tornaram menos interessantes ou mais incoerentes também, não me interessa, o que me interessa é que na primeira temporada J.J. Abrams, Damon Lindelof e Jeffrey Lieber conseguiram criar algo diferente e original para a TV americana da época e isso já é o bastante para considerar essa série memorável.

Algumas pessoas acham que a diferença estava no urso polar, mas poderia ser um sapo que fala urdu ou uma capivara purpurinada que iria funcionar de qualquer jeito. Se a originalidade da estrutura não acompanhasse o excesso de imaginação dos elementos colocados na história, a série não seria inovativa, seria apenas mais uma série que mistura aventura e ficção científica com um excesso de imaginação nos elementos de caracterização. O modo como o desenvolvimento de personagem é tratado em toda a primeira temporada é o que dá o verdadeiro diferencial de qualidade. É aí que residiu o grande “mistério” de Lost. Mesmo se depois, esse diferencial diminuiu ou, segundo alguns, até desapareceu.

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