Roteiro de Víctor Erice, Ángel Fernández Santos e Francisco J. Querejeta de uma história de Víctor Erice e Ángel Fernández Santos
*Contém SPOILERS de O Espírito da Colméia (1973)
Don José é um boneco de papelão. Fino, chato e do comprimento de um homem, dele saltam pinos de metal onde são penduradas representações dos órgãos humanos. Don José é usado pela professora da cidade de Castille para ensinar a anatomia humana. As crianças da sala de aula penduram os órgãos nos pinos certos e aprendem como os seres humanos são por dentro. Don José, no entanto, não aparece em O Espírito da Colméia, de Victor Erice, por mérito próprio, mas sim pela relação que é criada entre ele e o símbolo máximo desse filme: o monstro de Frankestein.
Da mesma forma que o Dr. Frankestein contrói o seu monstro "peça por peça", as crianças da sala de aula montam o boneco da aula de anatomia órgão a órgão, sendo que o último dos órgãos dispostos são os olhos e quem os coloca é a protagonista da história, Ana. Engraçado, pois é através dos olhos dela que a história vai ser contada e sentida.
Nesse filme, tanto os emblemas da maturidade, como a violência, o sexo e a morte; quanto a política, na figura do soldado republicano, se vestem com a capa do mistério, como se algo de sobrenatural permeasse a narrativa toda. E o maior símbolo desse mistério é o monstro de Frankenstein. O uso dele pelo diretor sofre um verdadeiro "arco" de significações durante o decurso do filme.
Em primeiro lugar, a história se passa em 1940, mas o filme que as crianças veem no começo da película é "Frankenstein" de James Whale, feito em 1931. O filme exerce um forte impacto sobre Ana, que não entende o porquê do monstro de Frankenstein matar uma menina e depois ser morto pelos moradores da vila que fica perto do castelo do Dr. Frankenstein. Sua primeira reação é falar com sua irmã Isabel sobre isso. A mesma fala que Frankenstein é um espírito e que para ir até o seu encontro tudo o que ela precisa fazer é abrir as portas e dizer "Soy Ana." Frankenstein, ainda no começo da película, já foi duas coisas: filme e espírito.
Num outro momento, Isabel leva Ana até uma casa que possui um poço. É uma casa abandonada, devassada, para onde Ana vai voltar várias vezes, procurando pelo monstro. Entre uma e outra investida até a casa do poço, desenvolve-se a cena com Don José. Nesses momentos, o monstro de Frankenstein volta a aparecer, mas apenas no desejo de Ana em encontrá-lo.
Mais tarde, Isabel (sempre Isabel!), cai de uma cadeira e tomba desacordada no chão. Ana aproxima-se dela e imagina que sua irmã possa ter sofrido um grave acidente. No começo desacredita a mesma, pensando que ela está fingindo, mas depois se assusta e vai procurar ajuda. Ao percorrer os corredores e quartos de sua grande casa, acaba por parar por um momento e nesse instante seu rosto é agarrado por luvas gigantescas que remetem às mãos do monstro de Frankenstein. Mas não é o monstro, é sua irmã Isabel lhe pregando uma peça.
De um trem cai a próxima aparição do monstro de Frankenstein no filme. Ou melhor, rola, quando o soldado republicano espanhol se atira de um dos vagões do trem que passa perto da casa do poço constantemente visitada por Ana. O soldado se abriga no local e, claro, acaba sendo avistado pela menina. Esta oferece o relógio de seu pai para o soldado e lhe dá comida, quase que mimetizando a cena que viu no filme de James Whale. Em seguida ela vai embora e escurece. E na escuridão, flashes de luz representando tiros de fuzil se multiplicam dentro da casa.
O pai de Ana, Fernando, é chamado por um oficial espanhol para que lhe seja devolvido seu relógio. O soldado que se refugiou na casa do poço foi morto. Desconfiado das andanças de Ana, já que seu relógio só pode ter parado nas mãos do soldado por meio de uma das irmãs, Fernando a segue na próxima vez que ela vai fazer uma visita a casa do poço.
Ao chegar no local, a menina não entende o que pode ter acontecido. Vê sangue, mas o soldado já não está mais lá. Atrás dela está o seu pai. Ela foge. E de novo, só que agora à noite, aparece o monstro de Frankenstein. Mas dessa vez é uma alucinação dela. E o monstro não é o de James Whale e sim seu pai, travestido de monstro de Frankenstein.
Fernando, que apesar de distante, mostrara no filme apenas sinais de amistosidade até o momento, mudou. Depois do instante na casa, também está revestido desse mistério insolúvel que engloba violência, morte e política que é incompreensível para Ana. E por isso, ao vê-lo em sua alucinação como o monstro, seus dentes batem sem parar, já que aquilo que lhe está mais próximo também não pode ser explicado ou compreendido. Tanto seu pai quanto sua irmã Isabel parecem ser feitos de um material diferente que o dela. Mistérios cercam a pequena Ana, incapaz de digerir tudo o que lhe está sendo jogado de uma só vez.
Mais tarde, Ana é localizada e trazida para sua casa, em choque. Não come, não dorme, não vive. Mas, segundo o médico, essa fase vai passar. Foi uma experiência traumática, mas às vezes é das experiências traumáticas que os maiores ensinamentos são transmitidos e as maiores transformações se completam. Afinal, na última sequência do filme, Ana sai de sua cama, abre as portas envidraçadas do quarto e fala, quase que para si mesma: "Soy Ana." Ela está pronta para receber o monstro de Frankenstein de bom grado. Não é mais curiosidade e sim aceitação.
Aceitação do mistério que todas as coisas ao seu redor possuem. Simbolizadas através da figura do monstro, um símbolo tão amplo e bem desenvolvido que suscita associações múltiplas do começo ao final do filme.
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