Roteiro de Mabrouk El Mechri com colaboração de Frédéric Benudes de uma idéia original de Frédéric Tadeï e Vincent Ravalec
*Contém SPOILERS de JCVD (2008)
Em resumo, Jean-Claude Van Damme interpretando Jean-Claude Van Damme. Mas dessa vez não é ironia, Van Damme interpreta a si mesmo no filme.
Geralmente quando se faz um filme sobre um ator ou personalidade da vida real, tenta-se colocá-lo dentro de um contexto que seja verossímel. Afinal, estamos em busca do "real".
Engraçado que, involuntariamente ou não, esse filme acaba fazendo as coisas de forma um pouco diferente. Supostamente estamos diante de Jean-Claude Van Damme, o ator belga, voltando para o seu país de origem. Van Damme passa por uma crise profissional, onde só lhe são dados papéis em produções obscuras do leste europeu. Além disso, está enfrentando um litígio judicial pela custódia de sua filha.
No entanto, logo que entra em um "post office" local, ocorre uma reviravolta. Tiros estilhaçam os vidros dos carros por perto e as pessoas em volta, depois de uma delas ter visto Van Damme bloqueando a janela com um móvel, chegam à conclusão de que o mesmo está assaltando o lugar.
Aos poucos, flashbacks vão esclarecendo a verdade. Três ladrões são os verdadeiros culpados. Mas Van Damme, por causa do mal entendido logo no começo, é visto como único culpado; e por isso, é usado como "testa-de-ferro" pelos criminosos.
Se formos analisar, quase todos os elementos desse filme se parecem com elementos de filmes comerciais nos quais Jean-Claude já trabalhou ou poderia ter trabalhado. Uma das linhas narrativas trata da história de um pai (Van Damme) que está tendo seu amor recusado pela filha. Ela tem vergonha dele, pois suas colegas acham-no ridículo e fracassado. E ele quer reconquistá-la.
A outra linha trata de um assalto no qual o protagonista se mete sem querer, fazendo com que as pessoas pensem que ele é o culpado. Um procedimento que remete ao melodrama do "falso culpado". No final, a resolução de uma das linhas vai influenciar a resolução da outra.
Mesmo os três criminosos se comportam de uma maneira codificada pelo cinema comercial: você tem aquele que gosta de Van Damme pois é seu fã; você tem o ladrão nervoso, que acha que é mestre na arte do roubo e está sempre à beira de fazer uma besteira (que aliás é um dublê mais velho e gordo do Jon Cazale em "Um Dia de Cão"); e você tem o assaltante mais moderado que faz a ponte entre os três.
Até aí tudo bem.
A única coisa diferente no meio de tudo isso é o modo pelo qual Van Damme é mostrado nesse filme. Vou dividir isso em três partes:
1-Comportamento de Van Damme
A história tem assalto ao banco e "falso culpado", mas o comportamento de Van Damme sempre se mantém na mesma: ele está impotente diante dos acontecimentos. Isso significa que ele não dá nenhuma "voadora" e não faz nenhum espacate.
Apanha sem revidar.
Consequentemente, tem que resolver todos seus problemas através dos diálogos ou de sua inteligência mediana. Ou seja, não resolve.
A sua "tour de force" dentro do filme acontece quando ele é levantado do nível do chão e percebe-se que ele está num estúdio, já que atrás dele aparece um refletor. Daí, olhando para a câmera, ele interpreta um monólogo sobre si mesmo e as agruras que enfrentou para conseguir ser um astro de Hollywood. Para depois cair em desgraça.
O momento é emblemático, porque o personagem se "destaca" de seu filme, como se fosse maior que a história que está sendo contada. Van Damme se comporta de forma realista, enquanto todos os outros personagens incorporam "tipos" dentro de um filme de assalto.
Você tem os ladrões, a polícia e as vítimas sequestradas dentro do "post office"; Van Damme parece não saber direito o que faz ali. É um peixe fora d´água não só no filme, mas no próprio gênero no qual o filme se insere.
A busca pelo "real" continua na própria estrutura do filme, já que grande parte dela se baseia no desvendamento de como (e por quê) Van Damme está (ou não está) roubando o local. Afinal de contas, estamos na "realidade". Van Damme roubar um "post office" na Bélgica não é uma informação muito verossímel. E como a informação é baseada num quiprocó, o mesmo teve que ser detalhado em vários pontos para que a situação toda se tornasse verossímel.
Considerando que o filme tem três pontas: autor(es), público e personagens, algo bizarro ocorre aí; de cara todo mundo no filme supõe que Van Damme está mesmo roubando o "post office". Ninguém se pergunta o porquê disso estar acontecendo. Os personagens aceitam muito fácil aquilo que o público demora para digerir e o filme gasta boa parte de sua duração para resolver. Parece que nem o público e nem o diretor engoliram fácil essa informação, mas todos os personagens coadjuvantes que não estão no local parecem acreditar nesse dado sem muito questionamento. Isso só reforça a impressão que os personagens estão "presos" em seus "clichês de filme de gênero", enquanto Van Damme está do lado de fora.
2-Motivação Oculta de Van Damme
Mas o Van Damme "real" também tem seu momento de "filme de gênero".
Isso acontece na parte em que dois dos ladrões estão acompanhando a negociação de Van Damme com a polícia. Eles têm uma série de exigências que Van Damme dá como se fossem suas. No final, ele acrescenta uma exigência que não estava no "script" dos ladrões. Pede uma quantia em dinheiro para pagar seus advogados.
Isso acontece na parte em que dois dos ladrões estão acompanhando a negociação de Van Damme com a polícia. Eles têm uma série de exigências que Van Damme dá como se fossem suas. No final, ele acrescenta uma exigência que não estava no "script" dos ladrões. Pede uma quantia em dinheiro para pagar seus advogados.
Depois de fazer isso, quase leva um tiro do assaltante mais nervosinho (o Jon Cazale dos pobres). Como explicação, diz que para as pessoas acreditarem que é ele que está roubando o local, precisa-se de uma motivação verossímel. E como ele está esperando uma transferência de dinheiro para pagar seus advogados, não há razão mais verossímel que essa. Isso lá pelos vinte e poucos minutos do filme.
Lá pelos cinquenta e poucos minutos, revela-se uma motivação oculta de Van Damme. Por um flashback fica-se sabendo que se Van Damme não pagasse os advogados em 24 horas, os mesmo sairiam do caso de sua filha. Ou seja, havia um certo desespero de Van Damme pelo dinheiro, informação que ainda não havia sido colocada no filme. Nesse momento, aquilo que antes parecia ter sido uma maneira de "ficar amigo" dos ladrões para que os mesmos não perdessem a paciência com ninguém (principalmente ele), revela-se uma esperteza.
Van Damme quis usar o assalto em seu favor, para pagar seus advogados. No entanto, por saberem de onde vem o dinheiro, os advogados deixam o caso e o plano dele fracassa. Nesse momento vem a questão: será que o Van Damme "real" seria capaz de um truque desses, mesmo que para pagar seus advogados? Nesse momento, o "personagem" Van Damme parece tomar conta do filme, deixando a balança entre o "real" e o "filme de gênero" mais complicada de ser analisada.
3-Filme de Gênero
Quando falo que esse filme segue um gênero, ou melhor dizendo, sub-gênero, estou dizendo que ele segue os "clichês" desse gênero. Com algumas adições interessantes, como por exemplo o criminoso que é uma paródia do Jon Cazale de "Um Dia de Cão".
Às vezes, em certos filmes, há uma diferença tão grande no comportamento do protagonista em relação aos outros personagens que parece que foram escritos em "chaves" completamente diferentes.
Um exemplo são as comédias clássicas, como as dos irmãos Marx, onde Groucho era um personagem que tinha tanta consciência e rapidez no pensamento que empalidecia os outros personagens, que em seus comportamentos não eram mais do que clichês do cinema daquela época.
Nesse filme acontece algo parecido, sem objetivos cômicos, embora em alguns momentos o personagem de Van Damme tome atitudes (como descrito no item 2) que possam ser inseridas e classificadas como "típicas do gênero."
Quando se vê JCVD, tem-se a impressão que o diretor queria fazer um filme onde Van Damme se "desnudasse" e mostrasse sua "verdadeira face". Geralmente, quando se faz isso, não só o protagonista quanto o contexto no qual ele está inserido transpiram "realidade". Ou seja, a história na qual o personagem se mete tem que ser "real" e tratar dos problemas "reais" do retratado.
Nesse caso não, pega-se um personagem "real" e coloca-o num contexto claramente fictício, num filme de gênero com vários clichês do gênero. Há uma estranheza aí, e a história tira sua força precisamente dessa característica que mistura o "real" e o clichê de uma maneira desorientadora e caótica.
A história se prejudica com algumas inverossimilhanças e a falta de originalidade de algumas das saídas encontradas, mas de qualquer maneira é interessante ver um filme no qual um lutador não luta, interpreta um monólogo e no entanto, consegue manter o interesse de quem o vê. Mas talvez os fãs de Van Damme não concordem comigo, já que só há uma cena de luta nesse filme e ela acontece já nos créditos iniciais.
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