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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Sobre Identificação e Distanciamento - Gran Torino (2008) de Clint Eastwood


Roteiro de Nick Schenk baseado na história de Nick Schenk e Dave Johannson

*Contém SPOILERS de Gran Torino (2008)

Uma coisa interessante em Gran Torino é o modo pelo qual os personagens durante o filme desenvolvem diferentes tipos de relação de identificação e distanciamento com o espectador. Essa diferença define o status de cada um dentro da história.

Você tem personagens com os quais nos identificamos e personagens dos quais estamos distanciados, com várias matizes entre si.

Entre o primeiro grupo posso destacar Walt Kowalski, Thao, Sue, a Avó, o padre Janovich e Martin, o barbeiro.

No segundo grupo, temos Spider, sua gang e a família de Kowalski: os dois filhos, noras e os netos, com destaque para a neta Ashley.

Walt Kowalski

A história de Kowalski é uma história de redenção. Um personagem incômodo, com características desagradáveis e um trauma, que durante o filme vai se mostrando cada vez mais positivo para nós até que no final ele alcança um certo tipo de redenção. Um "certo tipo" por quê a mesma não nos leva a um final completamente feliz como por exemplo o de um filme como Melhor é Impossível (1993) com Jack Nicholson.

Walt tem péssimas relações com seus filhos e netos e no começo vê os seus vizinhos "Hmong" com hostilidade. Mas há um problema maior: as 13 pessoas que matou na guerra da Coréia deixaram uma marca que (supostamente) o atrapalhou durante a vida inteira. Essa marca é, em parte, a causa de sua amargura (a outra parte vem da sua base moral e ideológica). É, inclusive, o que pode ter afastado-o de seus filhos, já que grande parte do distanciamento entre eles é causado pelo fato que Walt nunca parece estar satisfeito com nada. Como sua mulher o aguentou por décadas é uma daquelas perguntas sobre "história pregressa" em um filme que nunca serão respondidas. Não é à toa que ela faleceu primeiro.

A introdução dos personagens "Hmong" na trama, entram como o conflito do filme, mas na verdade se tornarão a solução (a solução possível) para esse impasse no qual ele se encontra. A verdade é que Kowalski NÃO QUER esquecer a guerra. É como se ele necessitasse "mortificar" a si mesmo para sentir-se "moralmente confortável". Mas mesmo isso não é o suficiente. Ele precisa de algo mais. Como foi dito em uma das conversas com o padre Janovich, pessoas "mais fortes" do que ele conseguiram esquecer a guerra e viver suas vidas em paz depois da guerra, mas o não-esquecimento de Kowalski não nasce da covardia ou da coragem, nasce do remorso e da vontade de fazer o que é certo em relação a essa situação. É uma escolha moral antes de mais nada. Só que as circunstâncias, até agora, não haviam lhe dado material para que ele reelaborasse a questão e desse uma resposta à altura de sua própria expectativa. Talvez por quê até o momento ele não tinha se deparado com um perigo de vida tão grande. Esse perigo vai lhe dar uma resposta que, como a do treinador em "Garota de Ouro", vai pender para uma morte digna em meio a uma vida de desilusões.

Grande parte da qualidade do modo como a identificação com esse personagem é feita vem da ambiguidade das informações dadas. Walt é um homem rabugento e marcado pela guerra. Sua personalidade poderia ser "explicada" pelo fato de sua mulher ter acabado de morrer e dele ter se "sujado" na guerra, causando um trauma irreparável. O problema é que através do mesmo filme sabemos que ele sempre foi distante dos filhos, portanto a morte da mulher não tem nada a ver com isso. E "homens mais fortes" do que Walt conseguiram sublimar a guerra, ou seja, se ele não deixou isso para trás tem muito a ver com sua própria personalidade e não somente com as causas externas. Os desmandos da personalidade de uma pessoa, como sabemos, tem muito de arbitrário e inexplicável.

O sacríficio que Walt comete no final do filme, ao ver que o destino de Thao e Sue não seria bom com os "Hmong Boys", também pode ser considerado um suicídio, já que houve premeditação em seu ato. E será que ele tinha certeza de que a gang seria presa? Seu ato poderia não ter dado em nada. Considerando que ele recebeu o resultado de um teste de sangue e esse teste não nos é mostrado, até nisso Eastwood quis abrir uma nova perspectiva sem deixá-la predominar na história. Imaginamos através do que é mostrado e das tosses que expelem sangue que Kowalski tem alguma doença mortal, mas ficamos com a sutileza de uma decupagem que não mostra isso claramente. Muitas perspectivas são abertas e todas são coerentes, mas nenhuma delas é demonstrativa, ou seja, nenhuma delas quer provar por causa e consequência o comportamento de Walt. Essa é uma das grandes forças do filme e um dos motivos maiores da identificação do espectador. O comportamento de Kowalski nunca é explicado, então Kowalski não é "curado" de seus desvios e sim leva esses desvios ao extremo, desenvolvendo sua personalidade ao máximo, dadas as possibilidades que se abriram para ele.

Mesmo o equilíbrio alcançado no final é frágil e Walt só consegue alcançar um tipo de paz quando se entrega a violência, desta vez perpetrada contra ele mesmo. O personagem mais "durão" do filme não dispara um tiro no filme e é morto por uma gang "pé-de-chinelo" ao pegar o seu isqueiro, desarmado, em frente a casa dos mesmos. E, no entanto, esse é o final que, para ser executado, exigiu mais coragem por parte de Kowalski.

Os filhos de Kowalski e a neta Ashley

Não há praticamente nenhuma cena no filme onde os filhos de Walt ou a neta demonstrem algum tipo de qualidade. Diferente de Spider e sua gang, esse núcleo representa um antagonismo que o protagonista teve que enfrentar desde um tempo maior que o começo do filme. Por isso, mais profundo, mas menos mortal.

O que mais nos distancia dos dois filhos de Walt é a indiferença que eles apresentam perante o pai. Seja na Igreja, onde comentam sobre a rabugige do mesmo com distanciamento total, até o momento em que depois de receber o resultado do teste de sangue Walt telefona para um deles e o mesmo não consegue notar o "pedido de ajuda silencioso" de seu pai, parece que todos estão em frequências diferentes. E por quê não, em épocas diferentes, já que o mundo de seus filhos é o mundo da Toyota enquanto o mundo de Walt é o mundo da Ford e da cerveja Pabst.

Já Ashley, a neta de Kowalski, é basicamente uma interesseira. Seu interesse pelo Gran Torino, mesmo não gostando de Kowalski e sabendo que também não faz muito sucesso com ele, só a coloca mais distante de nós. É uma personagem sem ambiguidade e funciona por quê é coadjuvante. De certa forma, é um exemplo de personagem do qual nos distanciamos completamente por só serem mostradas coisas ruins do seu caráter.

Thao, Sue e a avó

Thao, no começo, é lacônico no limite do compreensível. Não fala e parece se entreter apenas com seus poucos afazeres domésticos. É criticado pela avó e pelos "Hmong Boys" por sua falta de "masculinidade". No entanto, tem alguma coragem para se manter fora do alcance da gang de Spider. À medida que vai convivendo com Kowalski, no entanto, começa a se auto-afirmar e conseguir, com a confiança adquirida, tornar-se mais ativo, abrindo uma perspectiva para o futuro. Thao tem em comum com Kowalski a característica de querer resolver as coisas sozinho ou então não resolvê-las e deixar por assim mesmo. E por isso, quando se defronta com a gang "Hmong" não sabe dar uma resposta a altura dessa circunstância. Grande parte da identificação com Thao vai vir desse "arco de aprendizado" e do conflito externo, ou seja, dele ter que enfrentar um problema grande demais para as suas habilidades e sua personalidade.

Sue possui coragem e lábia afiada e o modo pelo qual isso é caracterizado beira o inverossímel. Ao ser abordada, junto com seu amigo/namorado, por três afro-descendentes agressivos e com más intenções, ela não se intimida. Tira uma da cara deles. Apesar de ser meio inacreditável, pelo menos a sua caracterização está clara: Eastwood quer dizer que ela têm culhões. A sua coragem soa tão corajosa que senti nela uma certa artificialidade. No entanto, como no caso de Thao, em um dado momento o conflito externo vai se tornar tão forte (quando ela é sequestrada e volta arrebentada) que a identificação se torna inevitável. Mas é uma personagem que poderia ter um desenvolvimento mais elaborado.

A avó é decididamente secundária na trama, mas há um ponto dela que acho interessante falar. Durante o filme, ela geralmente parece estar falando mal de Kowalski, só não sabemos o quê. Todas as críticas são feitas em sua língua natal. É um personagem que possui um lado irritante, mas ao mesmo tempo, está do lado do protagonista. Eastwood a caracteriza muito bem logo de cara, já que em uma das primeiras cenas, quando Kowalski está limpando o jardim, o mesmo dá uma cusparada, tique característico do personagem durante o filme, meio que para intimidar a idosa. Em resposta, a senhora dá, do alto de sua cadeira de balanço, uma cusparada que é pelo menos o dobro da cusparada de Kowalski, surpreendendo-o. Pela surpresa da ação, ela se torna cômica, e ao nos fazer rir, a idosa deixa de ser simplesmente um personagem irritante. Tendemos a pensar que ela, apesar da rabugice, tem algo em comum com Kowalski, além da habilidade no cuspe à distância. E isso já no começo do filme, onde os personagens ainda não estão claramente delineados.

Padre Janovich

O padre, depois de Kowalski e tanto quanto Thao, parece ser o personagem com mais matizes no filme. Talvez por quê dois traços de sua personalidade são desenvolvidos ao mesmo tempo: a inexperiência e a persistência. No começo ele aparece como um jovem e inexperiente padre, que leva uma sova verbal de Kowalski já de primeira. No entanto, não desiste e se mostra bastante decidido em sua missão de conseguir uma confissão do mesmo.

Talvez seu principal traço, aquele que lhe dá empatia com o público, é o da sua persistência. Ao não desistir de sua missão de arrancar uma confissão de Kowalski, o padre conquista o respeito dele e de tabela, o do espectador também. Esse traço vai se alargando durante a história, como quando ele chama a polícia já no final do filme; mesmo depois que a polícia decide ir embora, ele tem que ser forçado a ir embora, não indo de bom grado.

E, apesar de que não do jeito que queria, em um dado momento do filme, consegue uma confissão de Kowalski.

Já nos momentos finais do filme, no entanto, sua inexperiência serve de base para uma pequena virada de personagem. Depois de passar o filme de certa forma tentando negar o momento em que Kowalski disse que ele não tinha experiência nenhuma de vida, no final, no discurso à beira do caixão de Walt, diz que ele estava certo. "And boy, did I learn..."

Spider e sua gang

Spider e sua gang tem em comum com Ashley o fato de serem retratados unicamente através de traços desagradáveis. Se no caso de Ashley o mais importante é ela ser interesseira, no caso de Spider e sua gang, o traço principal é a covardia. Mas nesse caso, o traço principal é desenvolvido ao extremo. E nesse sentido, a caracterização surpreende pelos desdobramentos precisos.

Alguns flashes nos dão algumas informações importantes; como por exemplo quando Spider, incomodado com a recusa de Thao fazer parte da gang diz que ele está fazendo com que ele se "envergonhe perante seus amigos." Ou quando um dos membros da gang diz que "eu também era como você, mas depois que entrei na gang, ninguém mais mexe comigo." De certa forma, os membros dessa gang parecem estar se justificando de uma maneira que fortalece a tese de que se não estivessem em grupo ou com armas seriam apenas um bando de covardes. Não é surpresa então, que nenhum deles se individualize durante a história. O grupo protege, mas ao mesmo tempo tira deles a oportunidade de tomar decisões e resistir sozinhos.

O final da gang talvez seja a cereja do bolo de uma caracterização totalmente antipática, mas bem desenvolvida, já que, retratados como covardes que se disfarçam de corajosos o filme inteiro, a gang tem um final adequadíssimo: a prisão dos mesmos se dá depois deles matarem um idoso desarmado cujo único pecado foi o de puxar um isqueiro para acender seu cigarro. Foi necessária a gang inteira para fazer isso. Existe covardia maior?

Martin, o barbeiro

Um dos dois únicos amigos de Kowalski que aparecem no filme (o outro é Tim, da construção), Martin encarna em suas conversas com Kowalski o estereótipo do machão. Como todas as conversas tem um teor cômico, Martin acaba sendo visto sempre positivamente, e é uma ilha de tranquilidade em meio aos outros personagens que estão envolvidos nos conflitos mais violentos do filme. O momento em que se fala mais palavrão é o momento de maior alegria e melhor exemplo de boa convivência no filme.

Martin é um personagem que, como Ashley, Spider e sua gang, está unilateralmente de um dos lados do conflito. Nesse caso, do lado dos "bons", digamos assim. Tem certa semelhança com a avó de Thao, já que como ela no começo do filme, nos desperta a identificação através de traços cômicos de sua interação com Kowalski. Suas conversas recheadas de palavrões e insultos escondem uma amizade verdadeira.

A diferença é que a amizade que tem com Kowalski quase nunca é mostrada de forma direta e sim através da maneira bonachona como os insultos e impropérios são falados no salão de barbeiro. Existe uma ambiguidade no personagem, mas não em relação a um conflito interior e sim no modo como essa amizade não é igual a maioria das amizades a qual estamos acostumados a ver em histórias similares.

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