Roteiro de David Hayter e Alex Tse baseado na Graphic Novel de Alan Moore (roteiro) e Dave Gibbons (desenhos)
*Contém SPOILERS de Watchmen (2009)
Considerando que Watchmen foi lançado como HQ em meados dos anos 80 e só lançado agora como filme, dá para ter uma idéia do tipo de dificuldade que causou para que fosse feita uma adaptação. Isso porque um monte de gente colocou suas mãos nesse projeto e depois desistiu de levá-lo para frente. Primeiro por que o original é considerado um dos melhores quadrinhos de todos os tempos. É uma responsabilidade que pode manchar ou alavancar uma carreira inteira. Segundo por que a grande quantidade de linhas narrativas e o tamanho da obra (12 capítulos no original americano e 6 na primeira edição brasileira) fariam com que a mesma ou fosse cortada ou reelaborada radicalmente. Snyder cortou e reelaborou algumas coisas, mas não reelaborou radicalmente e talvez seja esse o seu erro. Nesse texto vou me focar mais em estrutura narrativa e na importância da definição e desenvolvimento da premissa (ou das premissas) dentro de uma história por quê acho os pontos mais importantes a discutir, mas teria outras coisas a falar sobre o filme.
No filme Watchmen há um eixo narrativo central e alguns episódios ligados ao mesmo que desenvolvem os personagens. O modo pelo qual esses episódios são "enxertados" no eixo central me parece o principal problema em relação ao original de Alan Moore.
Isso por quê, em primeiro lugar, o filme não é nem um multiplot como por exemplo Short Cuts do Robert Altman e nem um filme de episódios entrelaçados como Pulp Fiction do Tarantino. Os episódios não tem qualquer tipo de independência em relação ao eixo central.
Lembrando um pouco do original, Alan Moore arranjou uma solução inteligente para o problema que tinha em mãos. O eixo central da série de Moore é similar ao eixo central do filme de Snyder. Até aí não mudou tanto. No entanto, como ele tinha 12 capítulos separados, cada um tem começo, meio e fim. E a maioria deles tem sua espinha dorsal no desenvolvimento de um personagem.
Já o eixo central se baseia na investigação de Rorschach em cima da morte do Comediante. Uma informação prévia importante que vai se juntar a essa linha narrativa é a do iminente Holocausto Nuclear. Essas duas linhas vão se juntar de forma imprevisível (para quem não leu a HQ) no final. Mas como pode-se ver, o eixo central se baseia antes de mais nada, em TRAMA.
A profundidade e densidade dos personagens é desenvolvida nos "arcos" particulares de cada edição.
Já no filme de Snyder, a regra para o que seria aproveitado de cada episódio da HQ é a seguinte: linhas narrativas paralelas (como a HQ do Cargueiro Negro) e tudo o que não pertença narrativamente ao eixo central está fora. Segundo o "be-a-bá" do bom roteiro isso não está errado, afinal de contas, o que, em tese, não faz parte da narrativa, não precisa continuar no filme. Agora, o que cada um entende por narrativa é que é o "xis" da questão.
Muitos dizem que esse tipo de "corte" do material seria inevitável, já que "cinema é uma outra mídia" e coisa e tal. Snyder tinha que cortar alguma coisa por quê senão o filme seria inviável e muito longo. E que os problemas do filme decorrem desse "corte". Que é "inevitável" e que "não tinha outro jeito", por isso há de se ficar feliz com o que temos em mãos.
Mas a verdadeira questão nunca é o tamanho do filme e sim o que você corta e o que fica no filme. Se o que fica proporciona ao espectador algo equivalente ou mais interessante que a versão maior, ótimo. Mesmo que para isso seja preciso reelaborar o conjunto inteiro. O que aconteceu foi que Snyder manteve parte da narrativa como estava na HQ (embora tenha mudado várias coisas na execução, mas não vou entrar em detalhes em relação a isso), só que com cortes daquilo que parecia ser "dispensável narrativamente".
Nesse ponto, eu acho que o episódio referente a Rorschach é bastante representativo. No filme, depois que Rorschach é preso, temos uma sequência que desenvolve o mesmo. Essa sequência se baseia no material de um capítulo inteiro (contando como 12 o total) da série de Moore.
Na HQ, esse capítulo tem como ponto de vista narrativo o Dr. Malcolm, psiquiatra que vai cuidar de Rorschach. No começo sabemos que ele está otimista em relação a "cura" do mesmo. Ao ser submetido a um teste "Rorschach", Rorschach dá respostas positivas, ligando as manchas negras a borboletas e flores, uma atitude calculada para não dar na cara o estado mental em que ele se encontra.
Em paralelo vai sendo contada a história da vida de Rorschach, ou Walter Kovacs, uma história nada fácil e que o levou a ser o que é: um vigilante homicida.
Num segundo momento, Rorschach se mostra hostil ao doutor e resolve contar sua história verdadeira para ele. Começa com o modo pelo qual ele começou suas atividades de vigilante. Uma mulher chamada Kitty Genovese havia sido estuprada e morta em frente ao edifício em que morava e nenhum dos moradores fez nada. Depois de contar essa história, Kovacs encerra a sessão, deixando o doutor imerso em dúvidas. O caso parece mais difícil do que ele imaginava.
No meio tempo, Kovacs sofre um atentado, mas não se fere, e o responsável leva uma cuba de óleo fervente na cara. O doutor Malcolm começa a ver a gravidade do caso e sentir que o que Kovacs falou para os presos vale para ele também: "Eu não estou preso com vocês. Vocês é que estão presos comigo."
Daí a conversa entre os dois continua num outro momento e Kovacs continua a falar sobre si para Malcolm, contando sobre suas incursões contra o crime antes dele realmente se tornar "Rorschach". Ou seja, antes dele começar a matar implacavelmente os bandidos. Malcolm, desconfiado, decide mostrar de novo as manchas refazendo o teste "Rorschach". Nesse momento, Kovacs diz exatamente o que vê ao observar as manchas: a cabeça de um cachorro cortada ao meio.
É então mostrado o momento em que Rorschach desvenda o caso de um homem que sequestrou uma menina. Depois de tê-la estuprado e assassinado, deu de comida para dois pastores alemães. A cabeça de cachorro cortada ao meio que Rorschach viu é de um dos pastores desse homem. Foi o próprio Rorschach quem "fez o serviço". Ele, então, prende o pé do homem ao local onde incinerou o corpo da garota e bota fogo na casa. Antes disso dá um serrote para o homem, dando a ele a chance de cortar o próprio pé e fugir. Mas como Kovacs diz: "ninguém saiu."
No final do capítulo, o Dr. Malcolm é que se transformou. A visão de vida de Kovacs como um horror do qual não há escapatória tornou a vida do doutor um pouco mais escura. E Kovacs continua na mesma. Digamos que essa narrativa produz um efeito poderoso no leitor.
Esse enredo virou no filme uma sequência de nove minutos aproximadamente. Centra-se na entrevista do Dr. Malcolm e em flashbacks salpicados para ilustrar o que está sendo dito pelos dois. Digo entrevista por quê aquilo que era um "arco" na HQ virou um pequeno episódio apenas, uma sequência. Nessa sequência temos um começo parecido com o da HQ, ou seja, o doutor faz o teste "Rorschach" e Kovacs dá respostas enganosas para o mesmo. No entanto, logo depois das respostas enganosas, como num passe de mágica, ele já se enche do doutor e decide contar para ele "quem é Rorschach". E usa para isso unicamente a sequência onde o mesmo descobre a morada do homem que matou a menina, incinerou e deu para os pastores alemães comerem. Depois desse relato, o doutor Malcolm se retira do recinto dizendo que o mesmo não tem jeito. Para fechar a sequência temos a cena em que Kovacs sofre um atentado, joga óleo fervente na cara do agressor e cospe para todo mundo ouvir que "não sou eu que está preso com vocês e sim vocês que estão presos comigo."
Ao fazer esse tipo de corte, Snyder criou alguns problemas:
1-Para entrarmos na história da vida de Rorschach, Moore usa o ponto de vista de um personagem dito normal, o doutor Malcolm. É através dele que vemos a loucura de Kovacs e à medida que o mesmo vai se desesperando por não poder fazer nada, temos o EFEITO da história, aquilo pelo qual a mesma foi escrita.
2-Rorschach na versão de Moore é um homem. Ponto. Tem uma infância de traumas sexuais e bullying, depois uma juventude solitária onde vê que as supostas pessoas "normais" não dão a mínima umas para a outras e nesse caminho inocentes são mortos sem que nada seja feito. Entrando em contato com a criminalidade sua visão de mundo vai se deteriorando cada vez mais até o momento em que ele se depara com um caso tão bárbaro que o faz mudar completamente: torna-se um assassino. Isso é o tão falado "arco de personagem" que tanta gente fala, mas poucos praticam. Moore o delineou com maestria. Snyder o destruiu, sem necessidade de prática ou habilidade. Para Snyder, Rorschach é apenas um bufão violento e o que em Moore causa uma empatia desconcertante, no filme causa risos nervosos dado a distância da qual o público fica do personagem.
O problema não é o tamanho de cada participação do Rorschach na trama principal e sim o fato de que na HQ, você tem a fixação de uma premissa que vai ser questionada e desenvolvida durante a comentada edição para então haver uma mudança de status nessa premissa no desfecho do desenvolvimento. No filme, a conversa com o psiquiatra dura uma sequência e ele já de chofre percebe que Rorschach está mentindo. A personalidade de Rorschach é um dado consumado desde o começo, enquanto na HQ, ele é descoberto aos poucos. Essa é a diferença entre causar um efeito poderoso e jogar uma informação na tela só porque "tinha no original e é legal mostrar um homem acertando um cutelo na testa de outro homem (sendo que a cena do cutelo na cabeça não existe na HQ)."
De novo, repito que não é uma questão de "tamanho".
Perdeu-se tudo o que tinha de verdadeiro desenvolvimento de personagem do original e só sobrou TRAMA. Ou seja, menos EMPATIA, menos IDENTIFICAÇÃO e consequentemente menos EFEITO.
O desenvolvimento de personagem da série se baseava no desenvolvimento de personagem de cada episódio. Ou seja, cada capítulo tinha uma apresentação, um desenvolvimento e um desfecho. E principalmente, uma premissa, que era repisada e desenvolvida durante o decurso do mesmo.
A destruição das premissas me parece o principal problema do filme. Isso por quê no decorrer de cada episódio haviam revelações e essas revelações, que geralmente ficavam no final de cada capítulo, em sua maioria, foram mantidas. Por quê eram importantes para o eixo central. Como aparentemente as premissas não eram, foram cortadas.
Com Silk Spectre II acontece o mesmo só que em cima da revelação que o Comediante é o seu pai. Não vou fazer uma análise aprofundada já que tanto no caso dela quanto no caso do Dr. Manhattan ou do Nite Owl, as diferenças vem da especifidade de cada personagem, mas o processo pelo qual eles passam é praticamente o mesmo e motivado pela mesma idéia: o que servir para a trama principal fica e o resto vai embora. Isso, para alguns, chama-se "enxugar uma história". Na verdade, está destruindo-a, basicamente por quê o desenvolvimento de personagem e do tema de uma narrativa fazem parte dessa narrativa.
Segundo a divisão de Moore, o eixo central carregaria a trama e os "arcos" individuais dos capítulos dariam profundidade e coerência aos personagens. E mais do que isso, seriam responsáveis por grande parte do efeito emocional causado no espectador, já que as premissas estariam claras e o espectador, quando chegasse a revelação de cada episódio, estaria no "clima", empático com os personagens para que houvesse um forte impacto. Com a mutilação desses arcos, o desenvolvimento de personagem perdeu muito, embora a trama esteja aí, quase que inteira, mas meio modificada. E deixar os personagens boiando sem premissas fortemente desenvolvidas diminui o grau de identificação do espectador, fazendo com que o todo perca força.
O original tinha um equilíbrio delicado entre desenvolvimento de trama e desenvolvimento de personagem. O filme sacrifica o personagem em nome da trama por quê, afinal, "alguma coisa tinha que ser cortada".
A questão é, o filme tinha que ser reelaborado de forma a, depois de ter sido modificado, deixar os dois desenvolvimentos em equilíbrio de novo. Se isso fosse feito e as premissas estivessem claras, poderia se tentar criar no público um efeito tão forte quanto o original. Mesmo que algo radical fosse necessário ser feito, poderia ser feito. Repito, o problema não é o "corte" e sim o desequilíbrio entre trama e personagem causado pelo mesmo.
A pergunta é, será que seria possível um filme com menos material narrativo igualar ou pelo menos não fazer feio perante o original? Talvez não, talvez sim, mas do jeito que Snyder fez, com certeza não.
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