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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Sobre Métodos de Distanciamento - Perceval Le Gallois (1978) de Eric Rohmer



Roteiro de Eric Rohmer baseado na obra literária de Chrétien de Troyes

*Contém SPOILERS de Perceval Le Gallois (1978)
**Esse filme é difícil de achar, mas já estava querendo escrever sobre ele faz algum tempo; os próximos filmes analisados serão menos obscuros
***Como a maioria dos leitores foge de posts que falem sobre filmes que ainda não foram vistos, a análise desse filme vai receber um selo especial do blog: o selo "post que espanta leitor"; quando você vir esse selo, esteja preparado: o filme é "de arte" e/ou provavelmente você não viu...

Distanciamento talvez possa ser definido como o contrário de Identificação. Há certos elementos numa narrativa, sejam relativos ao personagem, à trama ou ao tema escolhido pelo autor de uma narrativa que tendem a criar mais ou menos identificação com o público.

Num primeiro momento poderia se pensar que criar elementos que suscitem a identificação sempre é o melhor a se fazer. No entanto, não é o que se verifica. A mistura de elementos com os quais o espectador se identifica ou se distancia muitas vezes cria um efeito mais poderoso do que se o autor fizesse simplesmente com que o espectador se identificasse o tempo todo com o material. Ou seja, tomando certas atitudes que supostamente distanciariam o espectador, o artista acaba por atraí-lo.

Isso por quê no intuito de atrair o espectador ou fazer com que ele se identifique, muitos autores acabam por se apoiar em emoções baratas ou clichês que dão certo, repetindo fórmulas, sem saber que estas acabam por se desgastar e perder o efeito diante de um público mais exigente.

Aquilo que num momento pode parecer que vai distanciar o espectador, na verdade é uma forma de dar a ele uma visão menos barata ou clichê da arte e da vida, sendo que a longo prazo esse elemento vai ser reconhecido como original e até pode começar a ser imitado para daqui a algum tempo se tornar mais um clichê da representação.

Falando sobre distanciamento: quando numa comédia pastelão, aparece um personagem com um longo bigode fake, o mesmo é claramente falso, fazendo com que ninguém se identifique com ele, mas ao mesmo tempo, sua aparência é tão ridícula que ele se torna cômico. Quer dizer, nesse caso, o distanciamento foi usado com propósitos cômicos.

Num filme de R.W. Fassbinder, os atores geralmente interpretam suas cenas com o mínimo de emoção possível, o que em tese, faz com que o espectador não se identifique tanto com os dramas dos personagens. Mas uma outra parcela do público acaba por adorar tal tipo de interpretação, justamente por que dificulta a identificação com o espectador, fazendo com que quando ela aconteça, aconteça com mais força.

Da mesma forma, muitas das decisões numa peça de Brecht visam ao distanciamento do espectador, mas com propósitos marxistas (da mesma forma pode-se considerar que os propósitos de Fassbinder tendem muito mais ao anarquismo do que ao marxismo). Ou seja, o distanciamento pode ser usado tanto para causar "efeito" (cômico, trágico, etc.) como para ajudar a levar a cabo certas premissas ideológicas do autor (que também acabam desembocando no "efeito" geral que a obra deve causar no espectador).

O assunto é complexo e não dá para discutí-lo em toda sua profundidade teórica num post de blog, mas espero que depois dessa introdução as pessoas tenham entendido razoavelmente o que estou falando quando me refiro ao termo "distanciamento".

E é por isso que vou comentar Perceval Le Gallois, que é uma enciclopédia de métodos de distanciamento. Vou até dividir por partes para poder explicar melhor.

1) Protagonista

No começo da história, Percival (vou usar a versão em português e abrasileirada de Perceval) é inocente ao extremo, tendo sido criado em cima das fantasias passadas pela sua mãe do que deve ser um cavaleiro medieval. Isso junto de uma completa ignorância, faz com que ele pareça um boçal. Quando encontra cavaleiros fica tão embasbacado pensando que são anjos ou coisa parecida que quase faz com que um deles perca a paciência. No entanto, apesar disso, Percival tem uma disposição inquebrantável. No começo, essa mistura de defeitos e uma qualidade, fazem com que ele cometa vários atos que poderiam ser considerados "maldades", embora cometidos sem a intenção explícita de fazer o mal. Como quando logo depois que deixa o castelo da mãe ele encontra uma donzela, quase a estupra e ainda rouba seu anel (essas duas coisas deixam-na imprestável para o casamento segundo o código da época). Ou quando desafia um cavaleiro em frente do castelo de Arthur e esse cavaleiro lhe dá um golpe com a lança apenas para atordoá-lo. Como resposta ele o ataca, acertando-o no olho, matando-o sem necessidade. Esse desenvolvimento de personagem pode ser considerado um método de distanciamento, já que é feito claramente de propósito para não haver uma conexão tão grande entre público e o protagonista no começo do filme.

No entanto, Percival é tão inocente que quando encontra um "homem de valor", Gornemant de Goort (os outros nomes vou manter em francês como estão no filme), e este lhe ensina através de algumas máximas os valores morais de um cavaleiro, sua personalidade sofre uma transformação. Seguindo o que aprendeu com ele, começa a se comportar de uma maneira mais responsável e nobre.

Ou seja, primeiro é ensinado pela mãe; agora, ensinado por um "homem de valor". Percival parece uma folha de papel em branco onde outras pessoas escrevem as premissas ideológicas através das quais ele norteará suas ações. Uma diferença para com o Percival medieval é o fato de que a inocência do Percival de Chrétien já pressupunha uma nobreza inerente e características morais específicas, enquanto o Percival dessa versão parece não ter freios morais tão nítidos. Ele é apenas inocente e ingênuo (e cabeça-dura) e o que Rohmer diz com isso é que mesmo pessoas inocentes e ingênuas, quando mal orientadas, podem fazer barbaridades. Isso não existe de uma maneira tão auto-consciente no Percival medieval. Os aspectos "politicamente incorretos" desse Percival derivam mais da época em que ele foi criado(século XII), enquanto na versão de Rohmer, os aspectos incômodos e desagradáveis da personalidade de Percival são colocados, ampliados e reelaborados para conscientemente causar estranheza e incômodo. E, por fim, distanciamento.

2) A Narração

Ao invés de tentar fazer um filme exclusivamente dramático, Rohmer opta por dar um privilegiado espaço para as narrações dentro do filme. No entanto, não a narração over, que é uma constante também nos filmes clássicos e sim a narração efetuada pelos próprios personagens do filme, sejam eles não-diegéticos (os menéstreis) ou diegéticos (os personagens que participam da trama).

A narração dos menéstreis lembra em muito o famoso "coro grego", sendo que no momento em que cantam, são focalizados e tornam-se o centro da atenção do filme, coisa que numa perspectiva de cinema clássico, seria algo que "prejudicaria" a fluência do filme. Muitas vezes esse "coro" é reiterativo, ou seja, ele repete nas palavras aquilo que você está vendo em termos de ação dos personagens. No entanto, por causa da música e da maneira incomum pela qual a informação está sendo dada, a sensação é de originalidade e não de tédio.

Muitas vezes, num segundo tipo de narração, os próprios personagens narram exatamente o que estão fazendo ou pensando. A narração é literal, cantando as ações em "tempo real".

Por fim, existe um terceiro tipo de narração, que descreve o que é feito, mas você não vê o personagem executando a ação inteira descrita pela narração. Como quando, no final, Percival se encontra com os devotos de Cristo que estão voltando da morada do Eremita. A narração diz que Percival "ao ouvir o que eles falaram, começou a chorar e partiu para falar com o Eremita. No caminho para lá, ele suspirou repetidamente." No entanto, o que vemos é simplesmente Percival andando a cavalo para longe dos devotos.

Uma variação desse tipo de narração ocorre quando a donzela "Blanchefleur" descobre que Percival está disposto a lutar por ela contra o cavaleiro que ameaça o seu castelo. Ela demonstra preocupação, falando o quanto o cavaleiro inimigo é alto, forte e etc., meio que para dizer o quanto se preocupa com a possibilidade de Percival não vencer. Nesse momento, focaliza-se duas menestréis quase escondidas nas colunas do aposento; com expressões maliciosas em seus rostos comentam o que "Blanchefleur" diz. Elas dizem que a mesma está preocupada, mas não recusa a ajuda. Ou seja, quer que ele vá lutar. Mas como ele já vai ir de bom grado para a batalha o melhor é esconder as reais intenções. Essa atitude por parte dela pode fazer até com que ele se torne mais ansioso em mostrar sua bravura. Ou seja, elas não descrevem e sim comentam a ação, revelando aspectos psicológicos que não seriam totalmente notados apenas pelo que nos mostra a câmera.

Os tipos de narração descritos acima seguem padrões que o cinema clássico classificaria como redundante, reiterativo, repetitivo e explicativo demais. Mas Rohmer está em outra.

3) Elementos Cênicos

Os cenário todo é estilizado. As árvores são claramente artificiais. O solo é da cor da grama que deveria estar lá, mas é claramente fake. Os castelos são pintados ou então construídos com material cênico; e um fundo infinito da cor do céu é usado para emoldurar tudo isso. Os interiores também seguem essa filosofia cênica. De certa forma, os cenários lembram cenários de uma peça infanto-juvenil sobre o rei Artur e seus cavaleiros.

Mais um aspecto do filme que pode dar uma impressão estranha no espectador, causando assim um certo distanciamento. No entanto, quando se junta com os diálogos e a ação, pode dar outro efeito, um efeito de estranheza que pode ou repelir ou conquistar de vez quem está vendo o filme.

4) As Quebras da Narrativa ou Construção Não-Aristotélica

Até um determinado momento, a progressão dramática do filme, apesar de episódica, mantém um determinado nível de unidade narrativa. Quando é apresentado o personagem Gauvain, no entanto, isso muda. Gauvain, apesar de não ter sido apresentado até transcorrer quase noventa minutos de filme, no momento em que entra em cena torna-se o centro da narrativa, deixando Percival para trás.

E aí começa um novo episódio, agora enfocando o conflito de Gauvain. Ligado a sua participação em uma disputa de lança e ao amor de uma jovem. Quando Percival volta, é para falar com os devotos de Cristo e o Eremita, fechando a sua participação. Ao saber pelo Eremita que sua mãe, como ele havia temido, teria morrido ao desmaiar na hora de sua partida, a participação de Percival no filme praticamente acaba.

Outro momento, em seguida da história de Gauvain e do (tênue) fechamento da de Percival, reforça a quebra da construção aristotélica do filme: o momento em que entra em cena o que poderia se chamar de uma "Coda" cujo tema é a encenação da paixão de Cristo de uma maneira alternativa, musical e teatralizada.

Para isso juntam-se os menestréis e atores interpretando os papéis principais da Paixão: Pilatos, Cristo, o soldado que enfincou a lança no corpo de Cristo e outros.

Em termos dramáticos, o conflito principal do filme acaba quando Percival descobre o que aconteceu com sua mãe; sua história tem um fim, mesmo que não definitivo. No entanto, Rohmer adiciona esse epílogo ou coda com a Paixão de Cristo, dando para a história mais um momento que se sustenta sem o obedecimento das regras aristotélicas.

Esse é momento em que as pessoas podem se perguntar: "Ué, mas a narrativa já não acabou?" Se fosse uma construção aristotélica, sim. Como não é, não. O que segura a Paixão de Cristo no filme é o tema desenvolvido, já que Percival, ao encontrar os devotos e o Eremita, acaba por reforçar o elemento cristão da trama e a importância deste dentro da história de Artur e dos cavaleiros, já que o Santo Graal, um dos assuntos que aparecem no filme, tem a ver diretamente com os milagres de Cristo.

De qualquer maneira, o mais importante para esse item é que esses dois elementos, a história de Gauvain e a Coda final, são duas sequências que se encaixam tematicamente no filme, mas que deixam a narrativa muito mais fragmentada e digressiva, além de lenta. O distanciamento que causam não pode ser negado, assim como a originalidade no modo como foram escolhidas e o ponto do filme em que foram colocadas.

5) O Ator Principal

O ator que interpreta Percival também interpreta Jesus Cristo na Coda do filme, outro elemento que para algumas pessoas pode soar estranho e para outras pode soar extremamente interessante, já que Percival lida com um dos mitos maiores da religião cristã: o santo Graal. Há um espelhamento entre Percival e Cristo, mas o que isso realmente quer dizer não importa, importa a sensação que pode acarretar para algumas pessoas, já que o cavaleiro e o salvador da religião Cristã nunca tiveram suas figuras espelhadas uma na outra, nem no poema épico de Chrétien de Troyes.

6) Cinema Contemporâneo x Poema Épico Medieval

O filme de Rohmer é de 1978. O Poema Épico de Chrétien de Troyes é do século XII. No meio disso surgiu Shakespeare e os romances realistas do século XIX. É engraçado que estejamos tão acostumados com o modo pelo qual o modo de representação desses últimos tem dominado a nossa visão de mundo e da narrativa durante tanto tempo que quando Rohmer nos apresenta uma narrativa cheia de métodos e táticas advindas de uma visão contemporânea e moderna da narrativa, essa visão nos parece tão estranha quanto a visão de Chrétien de Troyes do século XII.

As quebras narrativas, a construção não-aristotélica, as narrações que quebram a fluidez da história, o caráter episódico das sequências, a estranheza psicológica do protagonista, o caráter explicitamente artificial da representação, revelam antes de mais nada uma procura da recusa daquilo que pode ser considerado "realista", com grande poder de identificação, em troca de algo que sem ser "realista" possa também ser "expressivo". Ou seja, existe um efeito criado e esse efeito não depende de forma tão ampla da nossa identificação imediata com o que está sendo mostrado.

Muito do que Rohmer faz está totalmente de acordo com o espírito da época de Chrétien e o modo como ele construiu seus poemas. O distanciamento entre o muito antigo (Chrétien) e do novo (Rohmer) não é tão grande, o que é grande é o distanciamento tanto do filme de Rohmer quanto do poema de Chrétien da visão vigente de como se deve construir uma narrativa e consequentemente de grande parte do cinema clássico.

OBS: Lembrando mais uma vez que tudo isso é feito com o objetivo de criar um "efeito". Há uma unidade de intenções em Rohmer. As táticas de distanciamento no filme são usadas por razões específicas. Querer distanciar o espectador sem um objetivo maior é tão inútil quanto querer fazer com que se identifique apenas por se identificar.

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