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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Sobre Construção de Sequência - Onde Os Fracos Não Tem Vez (2007) dos Irmãos Coen

Roteiro de Joel e Ethan Coen baseado no romance de Cormac McCarthy

*Contém SPOILERS de Onde Os Fracos Não Tem Vez (2007)

Num filme, o modo pelo qual as informações são distribuídas define o modo pelo qual o espectador vai ser afetado por elas. Há maneiras mais diretas ou menos diretas de se mostrar as coisas.

Nesse filme dos irmãos Coen, algumas sequências primam pela construção indireta e muitas vezes o significado real de uma cena você só descobre na cena seguinte. E para entender essa cena seguinte foi preciso uma outra cena onde outra informação foi colocada para se juntar a essa. Complicado? Nem tanto.

Primeiro, um resumo bem rápido: Llewelyn Moss acha uma quantia de dinheiro em uma mala em uma pick-up, junto com alguns corpos. Ele pega o dinheiro e foge. No entanto, isso faz com que pessoas comecem a perseguí-lo. A mais importante delas na história é Anton Chigurh, um assassino profissional implacável, com uma frieza e uma persistência que beiram a inverossimilhança. Ao mesmo tempo, o xerife Tom Bell também está à procura de Llewelyn. Durante o filme, Tom Bell aparece em várias cenas cuja tema central é o seu desconforto em ficar velho. Os tempos mudaram e ele já não sabe se o caminho que ele escolheu para seguir (homem da lei) valeu a pena.

Talvez a sequência que mais causou confusão na cabeça das pessoas foi a final, onde se revela quem vai ficar com o dinheiro que foi pego por Llewelyn no começo do filme. A sequência dos acontecimentos é mais ou menos essa (vou pular alguns detalhes para ficar só no que é mais importante para a análise):

1-Llewelyn é morto por criminosos latinos que também estavam atrás do dinheiro. O xerife Tom Bell chega na sequência e chama a polícia local.
2-Mais tarde, Tom volta para o local da morte de Llewelyn; Anton já está dentro do apartamento. Tom fica com medo e hesita, mas decide por entrar, depois de esperar um pouco (dando tempo para Anton ir embora). Tom senta-se na cama e vê o respirador de ar, cuja grade foi desparafusada e cuja tampa foi colocada de lado, no chão.
3-Anton vai até a casa de Carla Moss, esposa de Llewelyn (onde outra cena de construção indireta acontece, vejam o filme). Anton mata Carla.
4-Na volta do "serviço", Anton é atingido em cheio por um carro. Ele sai do seu veículo com uma fratura exposta. Encontra dois garotos, de quem ele pega uma camisa para fazer um torniquete. Dá aos garotos uma nota de cem dólares e vai embora.
5-Há um comentário final de Tom Bell falando com sua mulher, Loretta.

Em Gosto de Sangue (1984), primeiro longa dos irmãos Coen, o protagonista morre faltando uns quinze ou vinte minutos para o final do filme, restando para a atriz coadjuvante a responsabilidade de acabar o filme.

Onde Os Fracos Não Tem Vez retoma esse tema da morte do protagonista como forma de criar um efeito imprevisível dentro da narrativa, já que a pergunta é: depois disso, o que mais pode acontecer? E mais, será que depois disso é possível manter o interesse do público na história? Que é possível Hitchcock já demonstrou isso em Psicose, mas é uma virada difícil de sustentar, já que a maioria dos filmes baseia seu efeito final no desenvolvimento do protagonista e a conclusão do desenvolvimento do protagonista é o fim da história. Nesse caso não. O protagonista morre faltando uma meia hora para a entrada dos créditos. Sendo assim, quase tudo que consideramos o "ato final" dentro do roteiro corre sem o protagonista.

A pergunta principal então não é mais em cima de qual será o desdobramento final do protagonista, mas se resume a "quem vai ficar com o dinheiro"? Ou seja, Onde Os Fracos Não Tem Vez torna-se um filme de mistério, já que quando essa pergunta for respondida o mesmo vai acabar. Não tirando a importância de um dos mais importantes temas da narrativa, o que se refere ao personagem Tom Bell. Os comentários dele durante o filme pontuam o mesmo e desenvolvem um dos motivos principais da história, mas esse tema é baseado em comentários e não em ação. Sem a linha narrativa de Llewelyn e do seu desdobramento no mistério de quem pegou o dinheiro, os comentários de Bell ficariam sem uma espinha dorsal para direcioná-los e sustentá-los.

A construção indireta de uma informação:

Para dar a informação de que Anton Chigurh havia pego a mala de dinheiro, temos duas cenas principais, a do item 2 e a do item 4 da lista acima:

2-Quando Tom Bell entra no quarto em El Paso e senta na cama, tentando entender o que aconteceu, olha para o respiradouro. Vemos que a tampa foi retirada. E os parafusos foram desatarrachados. Chigurh estava lá dentro um pouco antes.

Para se entender essa cena, tem que haver a lembrança de uma outra cena anterior do filme, isso por quê Llewelyn passa por dois motéis, o de Del Rio e o de El Paso, este último onde ele é morto. No hotel Del Rio, Llewelyn já havia colocado a mala de dinheiro no respiradouro. Anton Chigurh, ao ir até o quarto Del Rio, descobre o método de Llewelyn para esconder o dinheiro. E usa sua moeda para desatarrachar os parafusos que prendem a tampa do respiradouro. Portanto, se você lembra disso, junto com a informação que ele estava no quarto em El Paso quando Tom Bell foi lá, a tendência é imaginar que a mala foi parar nas mãos de Chigurh.

Em seguida o item 4:

4-Quando Chigurh é atingido por um carro, logo depois de ter assassinado Carla Moss, o mesmo é abordado por dois garotos de bicicleta. Em troca de silêncio e uma camisa para improvisar um torniquete, Chigurh dá a eles uma nota de cem dólares.

Numa cena anterior do filme, quando Llewelyn estava ferido, pouco antes de ir ao hospital, ele desabou no coreto central da cidade fronteiriça onde resolveu se esconder. Nesse momento, é abordado por "mariaches". Mesmo ferido, ele tira uma nota de cem dólares e oferece para os músicos. Esse "espelhamento" entre os dois personagens forma um paralelo que facilita ao espectador intuir o paradeiro da mala de dinheiro. São dois momentos em que o personagem em questão (Llewelyn numa hora e Chigurh na outra) está bastante machucado e oferece dinheiro para pessoas que estão passando por ele ao acaso num espaço público.

OBS: Só para lembrar, quando Chigurh teve que pegar material médico para se curar de suas feridas, ele não só roubou, como para roubar fez um esquema que incluía explodir um carro. Ou seja, ou ele não tinha dinheiro ou não queria gastar dinheiro com remédios e seringas. Nesse momento final do personagem, a sua atitude mudou completamente, o que faz com que se pense (mais uma vez) que ele conseguiu o dinheiro de Llewelyn.

OBS2: A coisa toda só funciona porque no momento em que a informação é dada, você ainda está pensando naquilo que é o centro da cena, a morte de Carla Moss e o acidente de carro subsequente que Chigurh sofre. Os Irmãos Coen fazem com que o público se foque nessa questão, e debaixo de tudo isso, com a cena dos garotos de bicicleta e a nota de cem dólares, encerra o tema do roubo da mala de dinheiro. Ou seja, é indireto, e por isso torna-se sutil.

Como pode-se ver, para que a informação "Anton Chigurh pegou o dinheiro" fosse dada (e sentida, que é o mais importante), foram necessárias duas cenas. Uma delas para abrir a possibilidade de Chigurh ter pego o dinheiro e a segunda mostrando algo mais conclusivo, o próprio dinheiro sendo usado. E, no entanto, me lembro que quando o filme passou no cinema, muita gente pensou que Tom Bell é quem tinha ficado com o dinheiro.

Isso porque não houve nenhuma referência direta ao fato de Chigurh ter pego a mala, como por exemplo, ele ter sido filmado com a mesma. Ou mesmo uma referência dialogada do fato. Nada foi dito ou mostrado diretamente e isso já é o bastante para deixar a informação ambígua.

É engraçado que essa parte final do filme tenha se sustentado em termos de interesse pelo modo obscuro através do qual os Irmãos Coen deram uma informação tão simples.

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