Roteiro de Joseph Stefano baseado no romance de Robert Bloch
*Contém SPOILERS de Psicose (1998)
O post de hoje versa sobre a importância dos detalhes dentro de um filme. Bem, na verdade não é sobre isso, é sobre motivação de personagem, mas a gente chega lá.
Quando Gus Van Sant lançou a refilmagem de Psicose, foi dito que iria ser uma refilmagem mesmo, ou seja, plano a plano; o filme seria reconstruído à imagem e semelhança do original. A proposta, abordada de forma extrema até que poderia ser interessante, já que o fator principal de interesse do novo Psicose não seria o quanto ele seria independente em relação ao original e sim o quanto ele teria de igual. Seria interessante ver uma versão de "Pierre Menard, autor do Quixote" de Borges aplicado ao filme de Hitchcock, mas infelizmente não acredito que foi isso o que aconteceu na prática.
Aqui no Brasil já houve uma conversa parecida na ocasião do lançamento da versão brasileira da série Donas de Casa Desesperadas. A Rede TV alardeou que seria igual, "tim-tim" por "tim-tim". Por curiosidade, fui conferir. O engraçado é que nas séries americanas eles abrem mais o quadro, ou seja, ao filmarem uma pessoa, seja em close ou o corpo inteiro, deixam mais espaço dos lados, dando para você o que há ao redor do personagem. Enquanto a decupagem das novelas, sejam brasileiras ou mexicanas, isolam a pessoa no quadro, colocando muito menos cenário. Há uma diferença muito grande no final das contas, já que em um tipo de decupagem você tem o contexto onde estão inseridos os personagens e na outra eles parecem estar flutuando no ar, isolados do mundo. A diferença é conceitual e visual, mas para algumas pessoas parece que não há nenhuma. E esse foi só o começo das diferenças...
A verdade é que refilmar algo para que fique igual ao original é uma tarefa hercúlea pela própria impossibilidade do empreendimento. Ou seja, a mise-en-scène e a decupagem fazem com que isso se torne impossível. Fora a diferença dos atores, dos cenários e etc. Por isso não vou me deter em diferenças que acho inevitáveis nessa análise. Vou tentar falar apenas das diferenças na narrativa. Ué, mas o roteiro não é igual ao original?
O roteiro não sei por quê não o li. Agora, a narrativa, com certeza, não.
Há elementos que foram acrescentados de uma versão para outra e acho muito interessante comentar sobre eles e o que podem significar (ou não significar).
Logo no começo do filme ouvimos o som de uma mulher gemendo e gritando, provavelmente por estar fazendo sexo. Essa é a dedução mais provável já que Marion e Loomis, seu namorado, estão deitados na cama quando isso acontece, provavelmente em momento post-coitum (ah, as palavras que a gente usa para falar de maneira indireta sobre sexo; mas há um motivo para isso e não é apenas pudor). Se essa mulher gritalhona estivesse sendo assassinada, talvez teria uma certa surpresa, mas também seria outro filme, com uma outra história. O fato desse som estar em BG, não sendo muito audível já que a conversa de Marion e Loomis cobre em parte os gritos da mulher, quer dizer que Van Sant quis ser sutil em relação a esse toque sexual na cena, mas não tão sutil quanto o original, onde não há nada disso.
Não sei se Van Sant usou o roteiro original de Joseph Stephano ou se o chamou para dar um "tapa" no mesmo e modificar algumas coisas. No entanto, duvido que mesmo se ele o tivesse chamado, Stephano teria, na cena inicial onde Marion e Loomis estão no quarto, colocado assim: "seria de bom tom colocar a bunda do Viggo Mortesen (Loomis) no filme". No entanto, ela está lá, quando ele puxa a persiana, deixando o sol entrar no lúgubre quarto de onde toda a história vai progredir. Interessante (ou diferente, não sei a palavra certa) ter sido a bunda do Mortesen e não a da Anne Heche (Marion). No entanto, é fácil saber o porquê... Anne Heche não tem bunda.
Espero que as pessoas estejam entendendo que as partes que estão sendo comentadas do filme tem algo muito claro em comum. Mas vamos para a próxima cena e eu diria que é a cena mais explícita em relação ao que está sendo mudado no filme. Norman Bates (se não sabe quem é, veja o filme), depois de comer com Marion numa sala cheia de pássaros empalhados, espera ela se recolher em seu quarto, para ele ir ao quarto contíguo ao dela fazer coisa que mamãe Bates não ensinou para ele. Norman tira um quadro que esconde um buraco de onde ele pode ver Marion se despindo e indo em direção ao chuveiro. Nesse momento, outro detalhe ou "toque" de Van Sant: Norman se masturba olhando Marion, coisa que (óbvio, o original era de 1960) não há no original.
Só para finalizar antes de explicar melhor o que estou querendo dizer, já no final, quando a irmã de Marion, Lila, está vasculhando a casa de Norman, ela acha um quarto que prima pela decoração ambivalente. Bichos de pelúcia e uma cama pequena dão a idéia de que talvez uma criança durma por lá. No entanto, na versão original, ao observar o toca-discos, Lila vê um vinil da "Eroica" de Beethoven. Música estranha para ouvidos infantis. Já na versão de Van Sant, no toca-discos há um compacto de "The World Needs a Melody", uma música country que não tem o mesmo significado imediato de choque entre "mundo infantil - mundo adulto".
Em seguida, na versão original, Lila pega um livro que não tem nome na borda e abre-o. Alguma coisa dentro do livro faz com que ela reaja de forma sutil, mas não há dúvida, ela leva uma surpresa. Ninguém nunca saberá o que havia naquele livro... já na versão de Van Sant, ela pega uma revista pornográfica que está ao lado e então temos a confirmação de que este é o quarto de Norman. Na "Eroica" existe precisão de caracterização e no livro de conteúdo desconhecido, sutileza e indeterminação, sem fazer com que o filme se torne obscuro. Já em "The World Needs a Melody", a caracterização é imprecisa enquanto a revista pornográfica é óbvia demais no que quer passar para o espectador. Mas não é esse o problema maior das "modernizações" de Van Sant.
Se você pegar todas essas diferenças que listei, um padrão começa a se delinear: todas as referências sexuais no filme são explicitadas. Basicamente todas as diferenças na narrativa do filme foram colocadas visando esse objetivo. Para se tornar "moderno" ou "contemporâneo", o filme precisa mostrar claramente aquilo que só de forma indireta foi abordado na versão original. Essas diferenças supostamente contrastam com o original de 1960, onde essas coisas eram proibidas de serem colocadas e o próprio público não aceitaria muito bem algumas delas (um dos grandes "avanços" comportamentais que Hitchcock enpreendeu foi filmar o vaso sanitário do banheiro onde Marion é morta no filme, coisa que não se podia fazer). O engraçado é que o fato de não se poder colocar referências explícitas forçavam os autores a inventarem maneiras de passarem a mesma idéia de forma indireta, o que poderia ser mais imaginativo e sutil. E uma obra de arte se beneficia disso.
Mas voltando... as únicas diferenças que notei não terem essa referência sexual tão direta foram a mosca que pousa no sanduíche que está disposto em uma bandeja logo na primeira cena, onde Marion e Loomis estão conversando, num quarto; e nas duas mortes, a do chuveiro e a morte de Arbogast, quando no meio das cenas são inseridos alguns planos aparentemente desconexos. Na cena de Marion é inserido um plano de nuvens escuras passando extremamente rápido e na cena de Arbogast são inseridos dois planos: uma mulher loira de "uniforme padrão sadomasoquista", máscara e corpete preto, deitada de lado e que vira a cabeça para a câmera; e uma vaca no meio de uma estrada num dia chuvoso, do ponto de vista de uma pessoa que está dirigindo dentro de um carro, sendo que o carro se aproxima da vaca em rota de colisão.
O plano da mosca no sanduíche passa um efeito de "cancro / podridão / corrupção" em um lugar ensolarado, que é o ambiente que Van Sant delineou para o filme. Ou seja, existe um cancro naquele mundo colorido. Esse efeito ele vai tentar colocar de novo no final do filme, quando com uma música melancólica em cima dos créditos, mostra a procura de corpos e do carro de Marion no pântano ao lado do motel Bates. Coisa que não havia no original. O estilo "macabro ensolarado", no entanto, que até que é interessante, não é aprofundado de uma maneira perceptível no filme e por isso fica difícil achar que ele tinha o mesmo como um tema verdadeiro, ao invés de ser simplesmente uma idéia legal que foi jogada em alguns momentos, mas que de certa forma ficou lutando com o filme que estava sendo feito durante a duração inteira do mesmo. E perdeu.
Já as inserções são outra história. A mulher do uniforme sadomasoquista poderia remeter de novo a explicitações de conteúdo sexual, mas as outras duas inserções não tem esse teor e por isso parece que foi algo que Van Sant achou legal colocar na hora para dar um efeito de estranheza para a cena. Um toque de distanciamento ou uma tentativa de choque dialético? Façam suas apostas. Mas também boiaram no mar da indefinição, juntando-se aos outros "toques" de Van Sant.
Dito isto, vamos ao que mais interessa.
Um dos aspectos mais interessantes do Psicose original é o modo pelo qual ele consegue mostrar coisas ao invés de dizê-las, como em muitos filmes de Hitchcock. No original, Norman é um jovem franzino, frágil e reprimido. Marion é o contrário, tem presença, beleza e uma certa auto-confiança. Ao encontrá-la, Norman demonstra sua insegurança diante dela; a sua presença o constrange. Sentimentos contraditórios o atacam. De um lado, ele se atrai por ela; se sente constrangido diante de uma mulher bonita que desperta o seu desejo. O desejo é tanto que ele vai espiá-la quando ela se despe para entrar no chuveiro (e pelo buraco na parede, provavelmente não sendo a primeira vez que ele faz isso). Ou seja, ele fica muito excitado e não tem como dar vazão a essa excitação. Geralmente, o que uma pessoa comum faz quando isso acontece? Toma um banho frio, se masturba, faz sexo com alguém ou simplesmente se angustia. Norman não, ele sublima seu desejo sexual de outra forma. Através da violência. E através da imagem de sua mãe, que funciona como um superego castrador que o impede de consumar seu desejo. Ao invés do sexo, a violência. Norman é antes de mais nada um reprimido sexual e aí vem o grande problema dos "toques geniais" de Van Sant.
Como é que um homem cujo motor de sua violência é a repressão sexual, pode ver uma mulher bonita e começar a se masturbar diante dela? É justamente por quê ele não se masturba (ou extravasa seu desejo de alguma forma) que tudo isso está acontecendo!!!! Ou seja, em alguns segundos, Van Sant acaba com a motivação do personagem e quebra as pernas da construção do mesmo. Pelo menos na estrutura armada por Hitchcock. Vejam bem, não estou dizendo que todo psicopata sexual age da forma como o Norman Bates do Psicose original. Mas como Van Sant usou esse personagem como base para o seu Norman Bates, se ele muda algo, muda todo o perfil do personagem e consequentemente coisas que faziam sentido na antiga versão podem não fazer mais na nova. A verdadeira questão é: ele coloca alguma coisa no lugar? O seu Norman Bates tem a mesma coerência e interesse do original, baseado no que ele colocou de caracterização e em suas ações? Sinceramente, se coloca alguma coisa nova no lugar, não consegui achar o que foi colocado. Como descrevi acima, me parece que sua preocupação se focou muito mais em deixar o filme mais explícito, talvez com o intuito de atualizar as referências sexuais para o público menos pudico de hoje em dia. Mas seria legal ele ter feito isso com mais consciência (seja para manter o que foi feito por Hitchcock ou inventar algo novo, mas parece que ele ficou no meio do caminho).
Por essas e outras, acho que o filme mais hitchcockiano de Van Sant, por mais estranho que pareça, fica sendo o Paranoid Park e não o próprio Psicose...
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