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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sobre o Primeiro Ato - Clube da Luta (1999) de David Fincher

Roteiro de Jim Uhls baseado no romance de Chuck Palahniuk

*Contém SPOILERS de Clube da Luta (1999)

Para começar vou fazer um pequeno resumo do que se poderia chamar de "primeiro ato" no filme Clube da Luta.

1-O narrador está sentado numa cadeira, já na cena que compõe o final do filme. O filme, consequentemente, é um imenso flashback. Ele está relembrando de como chegou até aquele ponto, onde carregamentos de explosivo estão prestes a implodir diversos prédios de um quarteirão. Tudo graças a Tyler Durden.
2-O flashback do narrador começa pelo grupo de terapia onde homens que tem câncer nos testículos expõe as suas tragédias. Lá ele conhece Robert Paulson.
3-O flashback pula para o seu trabalho e para a informação que faz seis meses que ele não dorme. Consequentemente, tudo no trabalho, principalmente seu chefe, parecem incomodá-lo.
4-Para compensar a vida onde não faz o que quer, o narrador costuma comprar incessantemente as coisas mais supérfluas possíveis. É um "consumidor".
5-No entanto, isso não o ajuda a vencer a insônia, que é seu principal problema (ele pensa que é). Ao ir para um médico que se recusa a lhe prescrever drogas, o mesmo lhe faz a recomendação para que ele vá até um grupo de terapia com homens que tiveram câncer nos testículos para ver "o que é dor".
6-Ele vai. E gosta do que vê. Encontra o personagem Robert Paulson e "extravasa" suas emoções, chorando, mesmo não tendo câncer nos testículos. Depois, dorme que nem um bebê.
7-À partir daí começa a frequentar grupos de terapia de pessoas afetadas por doenças devastadoras para se sentir melhor. Estar entre essas pessoas faz com que ele extravase suas emoções, acalmando-o.
8-Até que encontra Marla Singers, uma mulher que, como ele, não tem nenhuma dessas doenças, mas também frequenta os grupos de terapia. Marla lembra para ele o quanto ele é falso e como o que ele está fazendo é ruim.
9-Volta a insônia.
10-Num dos encontros, uma das pacientes, Chloe, expõe sua doença e o modo como apesar de estar com uma doença terminal, tudo que ela quer é transar. Depois desse encontro do grupo, o narrador finalmente confronta Marla. Depois de uma discussão, decide "rachar" os grupos de terapia com ela para não vê-la mais na sua frente. Mas pega o seu telefone, "caso tenha que falar algo com ela". Será que o narrador tem algum "interesse" em Marla?
11-Nisso, ele continua seu trabalho de investigador de companhia de seguros, analisando carros que deram perda total.
12-Na volta de uma de suas viagens de trabalho, ele está no avião e narra o modo pelo qual reza que um dia um outro avião bata no dele e acabe com seu sofrimento. Subitamente, seu desejo é realizado.
13-Na volta de seu delírio, o narrador encontra Tyler Durden no assento ao seu lado e começa a conversar. Acaba se interessando por suas teorias e seu jeito contestador, apesar dele ser apenas um "vendedor de sabão".
14-O narrador perde a mala na alfândega e ao voltar para casa, descobre que já não tem mais moradia. O apartamento explodiu. Sem ninguém para ligar (por quê ele não quer ligar para Marla), decide contatar Tyler.
15-Os dois conversam num bar e o narrador descobre mais coisas sobre Tyler.
16-Ao saírem do bar, Tyler sabe que o narrador quer pedir para morar com ele, então o força a pedir. Quando o pedido é feito, concorda, mas antes pede um favor. O de que o narrador lhe acerte uma porrada. Depois da desconfiança inicial, o narrador bate em Tyler e leva uma porrada de volta. Os dois começam a brigar, mas ao contrário do que parece, eles estão se divertindo. Essa diversão vai uní-los mais e mais durante o filme, fazendo com que um "clube da luta" seja criado. Esse "clube da luta" vai crescer e sair do controle e... bem, deixa para lá que eu só quero falar sobre o primeiro ato do filme.

Complicado para um primeiro ato, não? Afinal, é apenas o começo e não passaram mais que trinta e cinco minutos (no total o filme tem quase duas horas e vinte). No entanto, como há uma narração over que "costura" grande parte das linhas abertas, o diretor e o roteirista se sentiram mais livres para colocar uma grande quantidade de situações e personagens nessa parte do filme (uma narração que muitas vezes é excessiva).

A questão é que independente da multiplicidade de linhas e número de personagens apresentados, há uma unidade na aparição de todos eles. Essa unidade parte do personagem principal interpretado por Edward Norton e que não tem nome, por isso estou me referindo a ele desde o começo como "O Narrador".

Essa unidade é ocasionada pelo problema principal do narrador, a insatisfação que ele sente consigo mesmo e com a vida que ele leva. Representada, mais do que tudo, pelo seu trabalho. O "conflito principal" do filme, a criação do "clube da luta" e os problemas que ele causa para o protagonista são o conflito externo que segura a estrutura do filme, mas ocasionados por esse primeiro conflito no qual ele se "engancha" durante o primeiro ato.

Prestando atenção nos itens que coloquei acima, eles podem ser divididos da seguinte forma:

1 - Esse primeiro item é apenas a "moldura" na qual o "grande flashback" vai ser pregado, então não vou falar sobre ele. Vou direto para o que interessa.

3,5,9,11,12 - Nesses itens coloca-se o problema do narrador (insônia) e a causa mais próxima do mesmo, o trabalho que não o satisfaz.

2,6,7 - Nesses itens, coloca-se uma primeira tentativa de solucionar o problema, os grupos de terapia.

8,10 - No entanto, quando Marla aparece, os grupos de terapia "perdem o seu efeito"; o narrador negocia um acordo com Marla para que os dois possam "usufruir" dos grupos de terapia, mas essa solução parece apenas um paliativo de momento.

4,14 - Comprar coisas também é uma forma de atenuar o problema, só que essa solução vai ser literalmente "jogada pelos ares", quando o apartamento do Narrador explodir e ele tiver que morar numa casa abandonada com Tyler.

13,15,16 - Já no final do primeiro ato, Tyler entra em cena e quando o apartamento do narrador explode, ele vai ser a única chance do mesmo (a única possível, já que ele não quer ligar para Marla, talvez a verdadeira solução do seu problema, segundo o final do filme).

Vejamos então o que temos aqui:

Um personagem com um problema: o narrador e sua insônia

Uma causa: seu trabalho e consequentemente o que ele faz de sua vida
Duas formas de solucionar o problema, a primeira menos eficiente e a segunda um pouco mais eficiente, mas ainda assim um paliativo: o consumismo e os grupos de terapia

Uma dessas formas de solucionar o problema entra em crise por aquilo que vai se tornar a verdadeira solução do problema no final do filme: Grupos de Terapia / Marla

A outra das formas vai pelos ares: a explosão do apartamento ("consumismo")

Aparece uma nova solução, talvez mais duradoura, mas que vai se tornar o problema principal do filme: Tyler e o "clube da luta"

Pode-se notar que tudo gira em torno do protagonista, seu problema principal, e as maneiras dele solucionar seu problema.

Ou seja, não há nada no primeiro ato desse filme que seja gratuito ou colocado apenas por que é bom ou interessante (embora muitas coisas aí sejam boas e interessantes, mas funcionais). Tudo segue uma estrutura narrativa pré-determinada e centrada em um foco central do qual nada escapa. E isso, para bons filmes, não é uma exceção e sim a regra. Há filmes com estruturas mais digressivas, mas principalmente no cinema americano de qualidade, mesmo que não pareça, a preocupação com a unidade é total. E mais do que isso. A unidade é centrada em:

quem é o protagonista,
qual o seu problema,
as maneiras pelas quais ele quer solucionar esse problema
e as verdadeiras ou falsas soluções que as suas ações vão determinar durante o filme.

Para quem for rever o filme ou estiver com o filme na cabeça, pode-se notar que as linhas principais de desenvolvimento foram todas colocadas nesse primeiro ato. São três:

A) O trabalho e a insônia

O protagonista não sabe o que fazer de sua vida, já que a mesma não lhe dá nenhum prazer ou esperança. Grande parte desse problema é centrado em seu chefe-supervisor. Durante o filme, isso será resolvido quando ele usar sua nova atitude "Clube da luta" para definitivamente mudar sua vida (na cena em que ele se auto-espanca na sala do chefe).

B) Tyler e o "Clube da Luta"

No começo é a "solução definitiva" de sua insônia e da sensação de estar "perdido na vida". Depois se torna seu maior problema, quando o narrador descobre que Tyler têm planos agressivos e de caráter terrorista. A m*rda se agiganta quando ele descobre que Tyler Durden é ele mesmo e que tudo que está acontecendo, afinal de contas, é sua responsabilidade.

C) Marla

De certa forma, seguindo o padrão determinado pelo filme, Marla é basicamente aquilo do qual o narrador tem fugido durante o filme inteiro. No começo ela é um espelhamento da falsidade e desespero do narrador enquanto "usuário" de grupos de terapia (já que como ele mesmo diz, viciou-se nesse negócio).

Depois, o narrador começa a transar com Marla, mas em seu modo "Tyler Durden", ou seja, sem estar totalmente consciente disso. É uma fuga, novamente.

O narrador a coloca num ônibus para que ela vá embora e ele nunca mais a veja. Mas de alguma forma, Durden a traz de volta no momento final do filme. O momento em que o narrador dá um tiro na cara e faz com que Tyler desapareça. Se você considerar que Tyler é um "libertador" das vontades inconscientes do narrador, Marla, de certa forma, é a vontade mais "inconsciente" que o narrador possui. Ele a afasta continuamente e Durden a traz de volta continuamente.

Considerando que depois do tiro na cara, o narrador se libertou de muitos de seus medos, inclusive o de morrer (que é um medo supremo), não é surpresa que não só Tyler tenha ido embora, como também Marla seja agora "aceita" por esse novo narrador, mais afeito a aceitar suas vontades internas e cumprí-las, ao invés de ficar reprimindo-as às custas do seu sono e de sua tranquilidade.

Essa história junta dezenas de personagens, várias situações, linhas narrativas e um protagonista que tem um conflito interior complexo. Pessoalmente, acho que a primeira metade do filme é genial e a segunda deixa a desejar, mas independente do desenvolvimento, o primeiro ato de "Clube da Luta" promete. E é isso que um primeiro ato deve fazer.

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