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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Sobre Ironia Dramática – Star Trek (2009) de J. J. Abrams

Roteiro de Roberto Orci e Alex Kurtman baseado na série de Gene Roddenberry

*Contém SPOILERS de Star Trek (2009)
**Esse post é mais curto de propósito; o que vocês preferem, posts mais curtos ou mais longos? Quem puder, dê a opinião nos "Comentários" lá embaixo.

A Ironia Dramática

Geralmente a ironia dramática é considerada uma outra modalidade de suspense. Na definição tirada do livro "Roteiro de Cinema e Televisão" de Flavio de Campos:

"Numa ironia dramática, um ou mais personagens percebem apenas o significado aparente de um incidente e o espectador percebe tanto o significado aparente quanto o real".

Um exemplo clássico seria Quanto Mais Quente Melhor de Billy Wilder, onde os personagens principais se vestem de mulher para escapar da máfia, criando situações em que a maioria dos personagens, por não saber que as duas mulheres são na verdade dois homens, acabam por protagonizar inúmeros momentos de ironia dramática.

No entanto, a ironia dramática, em algums momentos, tem que ser "interpretada", baseada na soma das cenas ou sequências de um filme. É um tipo de ironia dramática onde as informações dadas só fazem sentido quando você as junta e tira conclusões à partir da conjugação entre o que foi dito e o que foi mostrado ao longo do tempo. Star Trek oferece alguns exemplos nesse sentido.

Temas

Vou pegar dois temas que aparecem no filme: o tema da dualidade entre os humanos (que representam a emoção) e os vulcanos (que representam a lógica e a racionalidade); e o tema da trapaça (cheating).

1-Tema da "Emotividade x Racionalidade"

Apesar de não ser fã de Star Trek, conheço o bastante para saber a oposição fundamental que existia entre os personagens Kirk e Spock em suas concepções originais. Kirk é humano e Spock é vulcano. Isso sempre quis dizer que Kirk, por ser humano, tem o “coração”, enquanto Spock não se deixa levar por sentimentos (ou malícia) e baseia suas decisões na lógica.

Engraçado que nesse reboot da série, uma mudança ocorrida fez com que, às custas de reclamações de alguns fãs da série original, os personagens acabassem por ter uma construção mais ambígua. E consequentemente criou-se uma fonte de ironias dramáticas para o filme.

A mãe de Spock é humana, e por isso, Spock tem o conflito de viver dividido entre as duas facetas de sua personalidade, a humana e a vulcana. Em uma das sequências iniciais, inclusive, o jovem Spock é mostrado sofrendo bullying de garotos vulcanos querendo fazer com que ele perca a paciência. Spock se descontrola e começa a bater incessantemente em um dos garotos, o que seria meio estranho para o "antigo Spock", tão lógico e auto-centrado.

Outras características vão aos poucos mostrando o quanto a concepção dos dois personagens principais no filme, Kirk e Spock, se torna aos poucos uma grande ironia dramática entre o que é dito sobre eles e o que é mostrado. O mais engraçado é que o que é dito ou falado parece baseado na concepção dos personagens da antiga série, enquanto suas ações são baseadas nesses novos pressupostos que norteiam e determinam o comportamento dos mesmos, criando uma contradição interessante durante o filme. Vou listar alguns aspectos da vida de Kirk e Spock para exemplificar o que falei.

A-Relacionamentos amorosos:
Kirk canta Uhura e vai para a cama com uma mulher verde, mas claramente são relacionamentos passageiros ou que não dão certo, aos quais ele não dá muita importância. Spock namora com Uhura e parece desenvolver um relacionamento com raizes mais profundas. Kirk se mostra mais "frio" do que Spock nesse sentido.

B-Família:
O pai de Kirk morreu antes dele nascer, a mãe só é citada uma vez, quando ele é garoto e rouba um carro, dando a impressão dela ser ausente; no caso de Spock, o pai dele tem uma participação importante no filme, onde o aconselha em momentos de crise e a morte da mãe é responsável por sua grande catarse emocional. De novo, Spock desenvolve momentos de alta emotividade através de sua família, enquanto Kirk parece estar sozinho no mundo.

C-Conflitos:
Spock briga com os garotos que o provocam por sua “herança genética humana” e depois com Kirk, sempre devido a uma carga emocional não digerida sobre si mesmo, a confusão que causa em sua cabeça ele ser meio-humano e meio-vulcano; Kirk briga com tripulantes da Frota Estelar, mas parece não levar a briga muito á sério; grande parte das brigas nas quais ele se mete parece ser devido a um traço de sua personalidade, seu desejo de vencer, enquanto a maioria das brigas nas quais Spock se mete tem a ver com uma intensa carga emocional que ele não digeriu direito e que parece fazer mal para ele; ou seja, considerando que um homem é ele mesmo mais as suas circunstâncias, como diria Ortega y Gasset, Spock é o personagem mais "sensível".

Um pouco depois do meio do filme, quando Spock perde a paciência com as provocações propositais de Kirk e o espanca violentamente, ato que irá fazer com que ele perca o posto de capitão da Enterprise, parece estar copiando um tipo de atitude que tinha quando criança e que foi mostrada no começo do filme, ao ser provocado pelos jovens vulcanos. Quer dizer, quanto a sua reação diante desse tipo de provocação que lida com a sua "herança genética", Spock age igual a quando era criança enquanto Kirk parece que já passou da sua tendência de roubar carros só pela adrenalina do negócio. Spock parece ainda ligado demais a comportamentos infantis para ter a lógica e a racionalidade como leme principal do seu pensamento.

Em outro momento, já no fim, o Spock "vindo do futuro" desaconselha o novo Spock a largar a Frota Estelar para formar uma nova civilização vulcana. Diz que a amizade recém-formada entre os novos Kirk e Spock pode trazer benefícios gigantescos para os dois e para os outros. Aconselha-o a fazer as duas coisas: continuar na Frota e formar a colônia vulcana. Uma decisão que tem um caráter altamente emotivo da parte de uma pessoa que supostamente encara tudo dentro dos padrões da racionalidade.

No entanto, em outros momentos, como quando Bones reclama da decisão de Spock lançar Kirk para fora da nave e diz que ele deveria pelo menos fingir que aquela foi uma decisão díficil, prioriza-se o lado "racional e frio" dos vulcanos em Spock. Ou então quando ele lida com a maioria dos outros personagens na trama, esse lado parece sobressair. Mas considerando a frieza e sangue frio de Kirk ao entrar na Enterprise sem ser chamado, ao conseguir se tornar capitão mesmo tendo que vencer Spock e ao enfrentar estrategicamente Nero, com chances muito grandes de não conseguir sucesso, quem é que prima pela emotividade e quem é que prima pela racionalidade no filme? Os personagens são contraditórios e a separação da emoção x razão personificada por humanos e vulcanos na série original virou outra coisa nesse novo filme. Se há alguém que prima pela emotividade é Spock e da mesma forma, se há alguém que possui sangue frio e uma certa frieza no comportamento, esse alguém é o capitão Kirk.

2-Tema da "Trapaça" (Cheating)

Esse é um dos temas mais importantes do filme. Em um dado momento no filme, James T. Kirk tem que passar pelo teste "Kobayashi Maru", um cenário de guerra do qual ninguém conseguiu escapar com vida (no simulador da Frota). Kirk consegue passar pelo teste, mas é acusado de ter trapaceado para conseguir seus objetivos. Kirk é chamado a um tribunal onde o homem que inventou o teste, Spock, confronta-se com ele. Spock, inclusive, coloca que o teste deveria ser imbatível para que quem o encarasse se defrontasse com a morte certa. A reação da pessoa frente a esse cenário "sem possibilidade de vencer" é que é o verdadeiro teste. Não aceitá-lo é não entender o teste. No entanto, Kirk diz que não acredita em cenários "sem possibilidade de vencer". Spock claramente acha que Kirk está errado e que não aceitar os princípios do teste não o deixam apto para ser capitão ou mesmo qualquer outra coisa na Frota Estelar.

Quando Kirk, mais para frente no filme, é jogado para fora da Enterprise pelo próprio Spock, e cai em um planeta gelado, suas chances de vencer são mínimas, mas por sorte e pela providência, acaba caindo no planeta onde o "Spock do futuro" foi deixado por Nero. Este lhe diz o que deve fazer para conseguir o comando da Enterprise e leva-o até um lugar de onde ele vai ser teletransportado de volta para a Enterprise. Na hora de voltar, Kirk comenta que Spock está trapaceando, já que ele está lhe dando informações que só tem por ter vindo do futuro; ao que o mesmo responde ter aprendido a fazer isso com um velho amigo (que é o próprio Kirk). O engraçado é que o Spock em sua versão “do futuro” trapaceia duas vezes: quando decide interferir no destino e jogar Kirk contra o "Spock do presente" e quando mente para Kirk para que ele vá até a nave; sem dúvida, Spock não só aprendeu com Kirk a "dar um jeitinho" como usa o método em abundância a ponto dele se tornar seu traço dominante de personalidade no filme.

A ironia dramática presente se baseia no fato de que a pessoa que dará todas as armas para Kirk "derrotar" Spock para o comando da Enterprise é o próprio Spock, só que em sua versão do futuro. E o traço de personalidade que norteia todo o seu comportamento (o de que às vezes precisamos "trapacear" para fazer o que é certo) lhe foi dado pelo próprio Kirk. Como essas ironias dramáticas trespassam temas inteiros do filme, elas se multiplicam em outras ironias menores, espelhando-se e dando ao mesmo uma complexidade insuspeita para um filme que certamente não é apenas mais um "blockbuster hollywoodiano".

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