Roteiro de Akira Kurosawa, Hideo Oguni e Masato Ide baseado em Rei Lear de William Shakespeare
*Contém SPOILERS de Ran
*Contém SPOILERS de Ran
Há cineastas que são avessos a colocar símbolos ou metáforas conscientemente dentro de um filme. Entre eles eu citaria Buñuel e Tarkovsky. As associações poéticas dentro de seus filmes não visam a uma interpretação propriamente dita e sim a um efeito, que muitas vezes não se sabe de onde vem ou mesmo por quê acontece. Outros, como Kurosawa em Ran, tendem a colocar metáforas ou símbolos conscientemente em seus filmes. Não há juízo de qualidade nisso, apenas a constatação de um estilo. Se o cineasta é afeito a colocar símbolos ele tem que tomar cuidado para não deixá-los óbvios demais para que não se tornem desinteressantes. Da mesma forma, quem gosta de fazer associações poéticas visando apenas o efeito que estas causam, tem que tomar cuidado para que não se tornem obscuras e para que tenham algum efeito no público.
Primeiro um micro-resumo do enredo: Hidetora, patriarca da casa dos Ichimonji, decide dividir as suas propriedades entre seus três filhos: Taro, Jiro e Saburo. A decisão irá lhe acarretar inúmeros problemas, já que no primeiro momento, dois dos filhos não se mostram confiáveis, querendo conquistar poder total sobre as propriedades. Isso irá levar a casa dos Ichimonji à destruição. A história é uma adaptação livre de Rei Lear de Shakespeare, mas ao invés de três filhas nós temos três filhos.
Kurosawa usa dois tipos de possibilidades. Um é a metáfora criada em cima de objetos e a outra é a metáfora criada em cima de uma situação. As duas se baseiam em uma imagem ou em várias, mas o elemento que carrega a metáfora pode tanto estar dentro da cena como ser a própria cena.
A) OBJETOS
As Três Flechas
Hidetora reúne os seus três filhos (Taro, Jiro e Saburo) para dizer que irá dividir as suas propriedades entre eles. No entanto, para lhes dar um último conselho antes da divisão ser feita, decide abrilhantá-los com uma pequena metáfora elucidativa. Pede para que cada um dos filhos tente quebrar um feixe de três flechas com as próprias mãos. Jiro e Taro não conseguem, o que faz com que Hidetora complete seu pensamento: um flecha pode ser quebrada, mas se três estiverem juntas, não se quebrarão. É uma metáfora para seus três filhos. Se ficarem divididos, cairão, mas se continuarem juntos, resistirão a tudo. O comportamento de Saburo, no entanto, é hilário. Depois dele não conseguir quebrar as flechas com suas mãos, coloca as flechas no joelho e usando-o para dar apoio, quebra o feixe inteiro ao meio. Digamos que ele trapaceou, mas mostrou o mais importante: as três flechas podem ser quebradas, estando juntas ou separadas. Esse momento é bastante significativo, já que à partir dele começamos a tomar consciência de um tema constante nesse filme, que é a quebra das “verdades sagradas” da sabedoria popular, das religiões ou mesmo das nossas expectativas em relação ao destino. Kurosawa não quer deixar nada de pé no final e esse “projeto” começa a se explicitar nessa cena.
O Elmo de Taro
Taro, o herdeiro maior do nome e da posição de Hidetora, morre. Lady Kaede, sua ex-mulher, vai até Jiro – o segundo dos filhos e agora detentor da liderança da casa dos Ichimonji – com o elmo de Taro em suas mãos. À princípio, uma mulher de gestos leves e submissos, Kaede se revela nessa cena. Jiro teve a ver com a morte de Taro, mas nunca revelaria isso para Kaede. Esta, numa performance física surpreendente, aproxima-se de Jiro e, sem que ele preveja o que irá acontecer, deixa o elmo de Taro cair e investe contra ele com uma faca. Começa a fazer pequenos cortes em sua cabeça até tirar a verdade da boca de Jiro: que Korugane, seu braço direito, foi o responsável pela idéia de “tirar Taro do seu caminho”.
O fato de Kaede ter usado o elmo de Taro apenas como “isca” para atrair a atenção de Jiro, mostra que, desde o começo, as suas relações amorosas são basicamente degraus para o seu objetivo maior, que é a destruição da casa dos Ichimonji. A família de Kaede ocupava essas propriedades até que Hidetora conquistou o lugar e matou grande parte de clã. Ou seja, Kaede irá dar início aqui ao plano de vingança que vai determinar todo o rumo da história daqui para a frente.
No final da cena, a câmera focaliza um dos cantos da sala e subitamente o elmo de Taro desliza para lá, como se tivesse sido deixado de lado. Quer dizer, depois dele ter sido usado como ferramenta para que Kaede entrasse naquele lugar, dominando Jiro primeiro fisicamente e depois sexualmente, o elmo é imediatamente jogado fora. Ou seja, o elmo é uma metáfora para o próprio Taro na história, já que agora Kaede terá um novo companheiro: Jiro.
A Cabeça da Raposa
Lady Kaede, logo depois de ter relações sexuais com Jiro, revela as suas intenções: quer ser mulher dele. No entanto, Jiro já tem uma esposa “oficial” que é Lady Sue. Kaede não aceita se tratada como uma concumbina e pede a cabeça de Sue. Jiro, apesar de assombrado com a idéia, parece estar de acordo.
Então é chamado Korugane, braço direito de Jiro e verdadeiro antagonista de Kaede no filme. Será ele quem vai ter que executar o “serviço”. Na conversa que é travada não é dada muita opção para que ele recuse a proposta. Korugane, no entanto, não concorda com o que foi decidido. Não acha certo que Lady Sue seja morta apenas por capricho de Kaede.
Quando ele volta a encontrar os dois novamente, traz um “pacote embrulhado” em suas mãos. Supostamente é a cabeça de Sue. No entanto, quando Kaede abre o “presente”, descobre que dentro havia apenas a cabeça da estátua de uma raposa. Furiosa, Kaede exige explicações de Korugane. Este, de forma irônica, diz que está surpreso. Uma mulher pode se transformar numa raposa? Ao falar sobre a raposa para Jiro, ele na verdade está falando sobre Kaede. Irônico, Korugane ressalta que algumas mulheres são como raposas. Com a mensagem dada e vitorioso no seu esquema, Korugane sai da sala tranquilo e ciente do dever cumprido, sem saber que até o final do filme, muita tragédia ainda irá acontecer.
O Pergaminho do Buda Amida
Em um dos momentos finais de Ran, Tsurumaru e sua irmã Lady Sue estão no castelo destruído que foi de seus antepassados. Kaede ainda quer a cabeça de Sue, mas na fuga que os dois empreenderam, Tsurumaru esqueceu de pegar sua flauta e a cortesã que os acompanhava se ofereceu para ir até a cabana onde ele morava. Lady Sue fica preocupada com a demora e decide ir atrás da mulher, mas Tsurumaru não quer que ela vá. Sue dá para Tsurumaru um pergaminho com o Buda Amida e diz que ele irá protegê-lo. Tsurumaru se acalma momentaneamente e Sue vai embora.
No entanto, o que acontece em seguida é que Sue morre nas mãos de um dos homens de Jiro. Tsurumaru, cego, fica sozinho nos restos do castelo, em meio ao abismo. Na cena final do filme, Tsurumaru tateia com sua bengala perto de uma das bordas do castelo, cuja beira dá para um precipício. Ao notar com sua bengala que está perto de um vazio, ele perde o equilíbrio e deixa o pergaminho cair. Agora, ele não só está sozinho, como sem o pergaminho do Buda que iria protegê-lo. Essa “perda” do pergaminho claramente alude ao fato de que nesse universo de Ran, as pessoas estão abandonadas por Deus ou no caso, pelo Buda Amida. Tsurumaru está sozinho em meio ao precipício. E não há nada que possa ajudá-lo, nenhum Deus, nenhum Buda.
B) SITUAÇÕES
Os Níveis do Inferno
Num determinado ponto do filme, Hidetora e Kyoami (o “bobo da corte”) estão à beira de um precipício. Hidetora pula e cai lá embaixo. Kyoami corre para socorrê-lo e ao chegar vê que ele está bem. Os dois, então, olham para cima e vêem Lady Sue, no topo do precipício. Em seguida, Tsurumaru aproxima-se dela. Hidetora fica apavorado e diz:
“Será que isso é um sonho? Não, é o inferno! O nível mais baixo do inferno!”
Em seguida, Hidetora sai correndo, já que ele nunca conseguiu conviver direito com o mal que ele causou a Tsurumaru e Sue ao conquistar a casa dos Ichimonji. Levando a metáfora do inferno até sua máxima consequência, tiramos daí uma constatação plausível: Lady Sue e Tsurumaru, de certa forma, são os personagens que menos se deixaram contaminar pelo “inferno” no qual se tornou as vidas de todos os personagens desse filme. Através da aceitação dos preceitos budistas e de uma certa nulificação de suas vidas, os dois conseguem conviver com o fato de que tiveram suas vidas despedaçadas por Hidetora. E agora, mesmo à beira da morte e do sofrimento, eles lidam com isso de uma maneira muito mais tranquila que Hidetora, que à partir de um determinado momento, com toda a sua angústia, loucura e desespero, parece ser o personagem que mais mergulhou nesse castigo infernal. Colocando Hidetora em baixo e Tsurumaru e Lady Sue em cima do precipício, Kurosawa delimita os limites máximo e mínimo desse “inferno”. Daqueles que conseguem transcendê-lo no limite do possível para o personagem que mais sofre com toda a extensão da tragédia que está se desenrolando. Os outros personagens não aparecem nessa cena, mas com certeza estão perdidos em algum lugar desse precipício, entre Hidetora, Lady Sue e Tsurumaru.
A Cabeça de Sue e as Flores
Um dos últimos momentos do filme é quando Korugane intercepta um dos homens de Jiro. Ele está carregando embrulhada a cabeça de um dos personagens da história. Korugane pergunta de quem é a cabeça, de Hidetora ou Saburo. No entanto, quando ele abre o “pacote”, pelo tipo de lenço que cobre a “entrega”, ele compreende que a cabeça na verdade é de Lady Sue e o seu esforço de tentar poupá-la não sensibilizou nem Jiro nem Lady Kaede.
Quando ele abre o “embrulho”, há um corte e vemos um plano de Lady Sue estirada no chão perto de sua cabana. Ao acompanharmos com os olhos a extensão do corpo pode-se ver que há flores onde deveria estar sua cabeça. Essa associação poética, de certa forma, representa bem a situação do personagem dentro do filme. Lady Sue foi uma das personagens que mais sofreu com tudo o que aconteceu, seja nas mãos de Hidetora ou agora nas mãos de Lady Kaede e Jiro. No entanto, através da aceitação dos preceitos budistas, apesar de ter tido um desenlace brutal, ela conseguiu atingir um certo tipo de tranquilidade em relação a aceitação do seu destino. Ela sintetiza tanto o lado brutal e selvagem do filme quanto o lado transcendente do mesmo, através da capacidade de resistência a dor e a frustração. E a imagem final de sua presença no filme pode ser tanto considerada macabra como sublime.
O Abismo
A imagem final do filme é a de Tsurumaru à beira do abismo, sem o pergaminho do Buda Amida, tateando com sua bengala em meio a um céu vermelho que parece totalmente indiferente, ou pior, mal intencionado em relação aos homens. Não há como deixar de pensar que ao compor tal imagem, Kurosawa está tentando falar através de imagens e nos dar um “instântaneo” da condição humana nesse mundo. A metáfora é mais abstrata, já que ela liga a situação de um personagem com a situação do homem como um todo, mas considerando que em alguns diálogos, principalmente entre Kyoami e Hidetora essa possibilidade já é verbalizada, tem-se um fechamento para o filme que na verdade é uma mensagem “anti-mensagem”. Ou seja, não há como se proteger nem racionalizar uma tragédia dessas proporções. Somos todos cegos tateando à beira de um precipício.
C) CASO ESPECIAL
O Céu
A Metáfora do Céu usada nesse filme, na minha opinião, é a mais rica de todas, já que ela muda de “status” e evolui durante o filme. Há três momentos principais:
1-Num primeiro momento, o céu aparece em cenas de transição; o mesmo ainda está azul e as nuvens, apesar de grandes, não são ameaçadoras. Nesse momento, não se espera evolução para esse “elemento de cena”. Tais transições lembram um pouco as transições de Ozu.
2-Já no final do filme, ao se reencontrar com Saburo, o filho que ele rejeitou, Hidetora olha para o céu e este se torna parte funcional da narrativa do filme. Hidetora, ao invés de falar com o filho, está embasbacado diante do céu. A imagem que vemos, então, é talvez a imagem mais impressionante mostrada no filme de um céu com nuvens. No entanto, se prestarmos atenção, vamos ver que as nuvens, embora continuem imponentes, não estão tão imóveis quanto no começo do filme. Elas se movimentam em velocidade, prenunciando o que ainda irá acontecer pela frente. Na verdade, Hidetora personifica a ambiguidade do momento com seu comportamento.
Primeiro, o esplendor do céu é admirado:
“Que céu! Eu estou em outro mundo? Eu estou no paraíso?”
Depois, ao se dar conta do filho, quando este tenta levantá-lo de onde está:
“Por quê você é tão cruel? Para quê vai me tirar da minha cova?”
3-Num último momento, o céu se torna avermelhado e à partir daí sabemos que adentramos em um “mundo crepuscular”, onde destinos trágicos esperam por grande parte dos personagens. Não é por acaso que o céu vermelho irrompe primeiramente na cena em que Hidetora e Saburo estão reconciliados e no mesmo cavalo, sem saber que em seguida, Saburo será alvejado, acabando por morrer. Hidetora irá seguí-lo na sequência, devido a dor suprema de ter perdido um filho. À partir desse momento, o céu não é mais elemento de cena, componente de cena de transição ou parte funcional da narrativa. Ele agora é parte essencial de cada fotograma, ele “invadiu” o filme e tomou conta do mesmo. Não há nada que escape de sua influência. Uma influência, que, de acordo com o seguimento da história, não é nada boa.
Num filme de segunda categoria, às vezes são feitas metáforas com o céu, como fazer com que ele escureça aos poucos, para acompanhar a progressão do drama, mas em Ran o empreendimento é muito mais ambicioso. A importância estrutural do símbolo vai mudando de acordo com o tempo. Seja julgando narrativa ou poeticamente, os desdobramentos da metáfora são capazes de surpreender pela riqueza apresentada sem chamar atenção demais para si mesmos.
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