Roteiro de Jean-Luc Godard
*Contém SPOILERS de Film Socialisme
*Contém SPOILERS de Film Socialisme
**Godard me convenceu que estou escrevendo posts muito grandes para um blog; à partir do próximo post não vou mais analisar filmes como um todo, vou falar sobre algum aspecto técnico do roteiro através de um determinado filme; espero ficar menos panorâmico e mais específico
***Algumas informações sobre o filme foram tiradas de um texto excelente de Arthur Mas e Martial Pisani publicado na revista Independencia e traduzido por Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro do site Incinerrante.com
À partir dos anos 70, Godard radicalizou algo que já vinha fazendo desde que começou a filmar, entre o final dos anos 50 e os anos 60. Muitos dos seus filmes à partir desse ponto se tornaram tentativas hercúleas de testar uma premissa que, grosso modo, pode ser colocada como: “até onde eu posso prescindir de uma narrativa razoavelmente clara e confiar totalmente no poder da mise-en-scène, das imagens e dos meus temas”. Film Socialisme não é novidade nessa busca, mas é um dos filmes em que ele consegue dar uma resposta que, se não é clara (como poderia com esse objetivo?), pelo menos rende um bom filme. Sendo assim, uma análise frutífera da obra de Godard passa por uma análise do que ele coloca e o que ele deixa de fora de suas narrativas. E como ele constrói, em cima disso, a unidade de seus filmes. Seria uma forma de ver até onde Godard vai em sua proposta e quais são os limites narrativos dos quais ele não consegue passar.
Para começar vou dar um pequeno resumo de cada segmento:
“Des choses comme ça” (44min.)
Um cruzeiro marítimo passa por várias localidades do Mediterrâneo. Nesse cruzeiro são focalizados um certo número de personagens. A maioria deles está ligado a uma linha narrativa que tem a ver com o “Ouro de Moscou”, tema que será melhor discutido no item “Referências Históricas”.
“Quo vadis Europa” (35min.)
Uma entrevistadora e uma cinegrafista chegam até a garagem da família Martin, querendo falar com eles e filmá-los, já que a mãe irá concorrer nas próximas eleições. No entanto, a família é avessa a esse tipo de coisa. À partir daí, as duas funcionárias do canal France 3 Région vão ficar rodeando o local, tentando conseguir alguma coisa enquanto na família, os filhos do casal, Florine e Lucien, irão inquirir seus pais sobre questões relativas a Igualdade, Liberdade e Fraternidade, princípios da Revolução Francesa.
“Nos Humanités” (17min.)
No terceiro segmento, não há personagens que se destacam. São mostradas imagens variadas envolvendo seis locais: Egito, Palestina, Odessa, Hellas, Nápoles e Barcelona. Ao mesmo tempo textos ou são narrados ou são colocados em cima das imagens dando continuidade ao raciocínio de Godard sobre a Europa de hoje e a relação dela com o passado e os mitos erigidos em torno da mesma e de países relacionados com ela. Esse segmento possui ligações com o tema do “Ouro de Moscou” também.
Elementos da Estrutura
Ação Principal:
No primeiro segmento nós temos uma ação que começa e termina. Ou seja, o cruzeiro marítimo. É como se todo o segmento fosse “emoldurado” pela viagem do Costa Concordia. Isso dá uma sensação de abertura e fechamento, mas não há uma resolução de trama e nem de desenvolvimento de personagem.
No segundo segmento nós também temos uma ação que “emoldura” o segmento, que é a tentativa da entrevistadora e da cinegrafista conseguirem filmar e entrevistar a família Martin.
No terceiro segmento, temos um ensaio cinematográfico. Não há uma “ação” principal, por que ele todo se constrói através da junção de images e sons em um método que pode ser definido como “dialético” e que será discutido mais para frente.
Os dois primeiros segmentos começam e acabam, pelo menos em relação a suas ações principais. A questão maior vem do fato de que um filme tradicional não tem o seu eixo apenas numa ação principal e sim na apresentação, desenvolvimento e resolução de um conflito e consequentemente nos efeitos que isso causa nos personagens e principalmente no protagonista. Por isso, passemos a esses dois elementos. Primeiro, o conflito.
Conflito:
Antes de falar de cada segmento, vou falar de um conflito maior que o filme contém. Godard está filmando um impasse (Europa Quo Vadis?), está representando um “Estado de coisas” e não exatamente um conflito que vai ser colocado e resolvido durante a duração do filme. Conflitos são apresentados e aprofundados durante o filme, mas não há desdobramentos nem resolução em termos clássicos. O que há é uma “orgia de caracterizações” baseado em associações (razoavelmente) imprevisíveis. Aquele universo está sendo detalhado em seus conflitos e em seus personagens, mas não está sendo colocado em movimento, não em um movimento que dê a ele uma resolução.
Fora esse conflito maior, que tem mais a ver com as intenções do autor do que com os personagens especificamente, temos no primeiro segmento um conflito relacionado com o personagem Otto Goldberg. Ele provavelmente foi um dos responsáveis por um desvio de ouro e está sendo investigado por outros personagens, como a Major Kamenskaia e o tenente Delmas. Outros personagens se juntam a esse, mas há alguns personagens que tem alguns conflitos que não são diretamente relacionados com essa linha do “Ouro de Moscou”, mas relacionados com a preocupação geral de falar sobre os problemas da Europa contemporânea. Um deles é a personagem Constance e quando falar mais profundamente de personagens, vou falar sobre ela.
Já o segundo segmento é um pouco diferente, já que há um conflito bem explícito que “emoldura-o”, baseado na recusa da família Martin em se “render” às câmeras do canal de TV representado pela entrevistadora e pela cinegrafista. Na própria família Martin, o fato de Florine e Lucien inquirirem continuamente sobre os temas da Liberdade, Igualdade e Fraternidade mostram um certo grau de conflito também. O comportamento dos pais denota um ponto de vista mais prático e esperançoso, contrapondo-se ao niilismo de Florine e Lucien, vistos como questionadores “sem causa”. No entanto, ter um conflito não quer dizer que ele será desenvolvido ou resolvido de maneira tradicional. O chamado “arco” de personagem não é o que acontece aqui, pelo menos não de forma tradicional, então vamos para os personagens para explicar o que acontece com eles.
Personagens:
Há uma multidão de personagens e isso está de acordo com a visão panorâmica que Godard quer dar dos problemas que são enfrentados pela Europa e ligados a outras questões mundiais referentes aos Estados Unidos, Israel, Palestina e alguns países do Mediterrâneo.
No primeiro segmento podemos dizer que a maioria dos personagens que tem alguma importância dentro do segmento estão ligados ao problema central carregado pelo personagem Otto Goldberg. Pode-se listar os personagens Otto Goldberg e sua neta, Alissa; a major Kamenskaia e o tenente Delmas, ambos investigando Otto; Constance, seu companheiro fotógrafo e seu afilhado Ludo, que faz amizade com Alissa; um espião do Mossad, um casal de palestinos e três intelectuais, respectivamente um escritor, um filósofo e um economista; e outros personagens menores que abundam no navio.
Já na segunda parte temos a família Martin (o pai, a mãe, a irmã mais velha Florine e o garoto Lucien) e as duas mulheres do canal France 3 Région que querem filmá-los de qualquer jeito. Como estou falando da unidade narrativa, que na maioria dos filmes é dada pelo desenvolvimento dos personagens (ou do protagonista, mais propriamente dizendo), vou falar sobre um personagem de cada um dos dois segmentos iniciais.
O Desenvolvimento de Personagem
Os personagens crescem mais para os lados do que para cima (ou para frente). Vou dar dois exemplos: no primeiro segmento a personagem Constance e no segundo o garoto Lucien.
A) Constance
Na sua primeira aparição, ela está perto do parapeito do navio e embora esteja sendo filmada em Close, não fala nada. Há uma narração over que é colocada em cima de sua imagem e ficamos sabendo algumas informações, inclusive o seu nome. É a sua “apresentação”.
Durante o filme, em um dado momento, a vemos caminhando no meio da sala de jantar do navio; há dezenas de pessoas, mas engraçado que ela seja a única negra (isso se junta ao fato de termos visto Patti Smith passeando com o seu violão um pouco antes e flashes dos garçons do cruzeiro, que são descendentes de orientais e árabes – ou seja, através das imagens, Godard mostra o quanto as divisões de trabalho e dinheiro nesse barco são sectaristas). Isso, de certa forma, é o acirramento de um conflito.
Na sua aparição final, Constance está de volta ao parapeito do navio, mas agora muito mais articulada; num discurso onde ela descreve a Europa como protagonista de uma situação miserável (a fala começa com “Pobre Europa”). De certa forma, é uma resolução, já que mostra o modo pelo qual ela lida e o que pensa de sua situação naquele barco. Pela primeira vez.
Muita gente vê momentos como esse como retratos do que o próprio Godard pensa sobre a situação da Europa, mas nesse caso em especial não é tão clara essa relação, já que há uma personagem que vemos ser aprofundada em termos de caracterização. E o seu conflito (a sua posição de negra em um cruzeiro de brancos), de certa forma, é explicitado, sendo que sua fala final é consequência de sua situação naquele navio e no próprio lugar onde vive. O “conflito”, digamos assim, não é desenvolvido em termos clássicos nem solucionado, mas ele é aprofundado a ponto de a cada cena termos mais consciência de que linha Godard está seguindo para fazer progredir o desenvolvimento e o nosso entendimento desse personagem. Um conflito que, repito, não é o tradicional, já que conflitos tradicionais muitas vezes exigem um outro tipo de desenvolvimento e resolução.
B) Lucien
O garoto Lucien e a jovem Florine são as figuras centrais do segundo segmento. Do momento em que aparece empunhando um pedaço de madeira para espantar a entrevistadora e a cinegrafista de TV até o momento em que pinta um Renoir fazendo pouco do original, talvez ele seja, junto com sua irmã, o personagem que mais enriquece durante o filme.
Em termos narrativos, ele não faz muita coisa além de tentar espantar as duas enviadas do canal France 3 Région, no entanto, a cada cena, ele parece ser focalizado de um ponto de vista diferente, dando espaço para que nele sejam dispostas várias camadas de caracterização.
Seja envergando o pedaço de madeira;
dirigindo uma orquestra invisível;
fingindo-se de cego para apalpar sua mãe e “vê-la” de uma outra forma;
soprando o canudo da sua bebida no ritmo do saxofonista de jazz, cuja música está sendo tocada ao fundo;
roubando o boné da cinegrafista e fingindo que não sabe de nada;
pintando um Renoir e falando do seu interesse no traseiro da cinegrafista;
dificilmente poderia se dizer que todos esses atos estão indo em direção de um mesmo objetivo narrativo para esse personagem, mas com certeza pode-se dizer que dentro dos limites que confinam o mesmo, ele está sendo desenvolvido e enriquecido a cada cena, através de uma caracterização que, além de interessante, não é repetitiva.
Mas, vendo esses dois personagens, vemos claramente que não é deles e nem dos outros personagens com “desenvolvimentos” parecidos com os deles que vem o eixo da estrutura do filme. Ou melhor, não é só deles, já que pelo que foi escrito, vemos que no filme há tramas e personagens sendo desenvolvidos, mas de forma parcial e fragmentada, se comparado com os métodos tradicionais de desenvolvimento de trama e personagem. Mas então o que mais ajuda o filme a ter uma unidade estrutural?
A Unidade Narrativa/Estrutural
A) O Método “Dialético”
Dialética você tem muitas. Seja a do Marx, a do Hegel, a de Aristóteles, a de Nicolau de Cusa, a dialética que não é dialética que aparece no livro “O Significado do Cinema” do Christian Metz, a noção de dialética do Eisenstein para o cinema, a decadialética de Mário Ferreira dos Santos e etc. e tal. Essa palavrinha já perdeu o seu sentido há muito tempo atrás dada a diversidade de “donos” que ela possui e a confusão que provoca toda vez que é evocada para justificar, nesse caso e em alguns outros, apenas um determinado método de criação poética. Digamos que Godard também usa essa palavra para designar certas atitudes que ele tem em relação ao seu material.
Por exemplo: quando Godard coloca as imagens do Encouraçado Potenkim e em seguida coloca as mesmas imagens da escadaria de Odessa, só que décadas depois, sendo visitada por turistas, algumas conclusões podem nascer dessa confrontação. A relação entre passado e presente. Entre idealismo e comércio. Entre a guerra e o parque temático. E isso pode criar um efeito. Em tese, essas relações se baseiam na tríade “tese-antítese-síntese”. Essa é a base, mal e porcamente falando, do que Godard chama de pensamento dialético.
Pode ser feito com elementos dentro do quadro, entre imagens, entre planos, movimentos de câmera, elementos cênicos, espaços, idéias, lugares, diálogos, voz over e etc. Basicamente você junta duas coisas e dessa junção nasce uma idéia ou efeito que seria impossível de obter sem os dois juntos (e mais importante, que não repete nenhuma das idéias evocadas anteriormente, ou seja, cria um novo significado).
O problema é que se você trocasse o nome de “método dialético” para “método poético” daria na mesma, já que a poesia nasce geralmente da associação de elementos, seja lá quais forem, e quanto mais interessante e imprevisível for a natureza da associação, melhor os resultados e consequentemente a poesia. Pode-se argumentar que da poesia nem sempre se nasce uma nova idéia, mas de muitas associações do filme de Godard também não. Afinal de contas, que idéia pode surgir da infinidade de animais que ele coloca em cena e principalmente da lhama que fica o tempo todo presa ao posto de gasolina? São associações poéticas.
De qualquer forma, é bom entender que esse método é básico para o entendimento do “método Godard” e de suas intenções ao fazer filmes como o Film Socialisme. E parte do abandono da narrativa tradicional se deve a fé que ele possui nesse tipo de encadeamento de elementos dentro do filme. Já que a intenção está tanto no que ele diz quanto na forma como ele diz. Mas a forma é mais difícil de ser apreendida por que não há dentro do filme uma mediação verbal que a explique de forma tão clara quanto os diálogos ou a trama.
Alguns outros exemplos (fora o da Escadaria de Odessa) desse estilo:
Entre elementos constituintes do próprio filme:
No começo do filme, há uma cena onde se mostra um plano do mar e ao fundo o som do vento batendo no microfone da câmera. Ao mesmo tempo, se há legendas, elas estão escritas numa “língua” que Godard chamou de “Navajo English”. Quer dizer, uma legenda não é apenas uma legenda e o som incidental não é apenas o som diegético do filme. É como se imagem, som e texto fossem tintas na paleta de um pintor e a combinação desses elementos não privilegiasse o “naturalismo” da composição e sim a imaginação do que vão ser esses elementos e de como eles devem ser combinados para criar idéias interessantes. O mesmo acontece com a narração over no filme, que geralmente é feita sem que se saiba com certeza quem está falando (quem está falando – e são várias pessoas – nunca aparece de forma clara). A mistura entre esses elementos do filme, que em outros filmes geralmente tem que criar uma sensação de homogeneidade, nesse filme e em outros de Godard tendem a criar uma sensação de heterogeneidade, ou seja, é sempre claro que a combinação desses elementos não é algo natural e sim criado pelo cineasta e, portanto, passível de associações e interpretações das mais variadas.
Entre elementos de cena:
Em um dado momento do filme, o garoto Lucien, do segmento “Europa Quo Vadis”, senta-se num banco na garagem, vestindo uma camisa da velha União Soviética e começa a reger uma orquestra imaginária. Como não há motivo narrativo para que ele tenha vestido essa camisa, sobra possibilidades de interpretação para o que Godard quer com a situação que criou. Pode estar fazendo uma metáfora da situação da União Soviética (Rússia) nos dias de hoje (e do próprio socialismo)? Ou simplesmente é um dado de caracterização de personagem mostrando o quanto esse personagem tem de rebelde (ou reacionário?) na sua concepção? Mais importante do que isso talvez seja o efeito que essa cena carrega consigo, que é o de ser interessante. Isso talvez já baste.
A questão é que o método “dialético” (detesto essa palavra) no cinema, ao contrário de na literatura ou filosofia, onde se está juntando discurso com discurso e não imagens com imagens, raramente chega a ser totalmente claro. Por isso, está sujeito a elocubrações fora de propósito e más interpretações. No entanto, tendo consciência da ambiguidade do processo, existe o lado bom de se fazer associações “a granel” como as que existem nesse filme. Godard manipula o material fílmico e a narrativa do filme para que aconteçam situações e imagens passíveis de interpretação, onde o significado não é óbvio e sim ambíguo. Grande parte do seu estilo como cineasta deriva dessa atitude em relação ao seu material. Se de um lado isso lhe dá muito da sua força poética, de outro, torna o conjunto difícil de ser organizado numa narrativa cerrada, onde, se essa fosse sua intenção, os elementos do filme deveriam ser mais claros. Ou seja, ele ganha de um lado e perde do outro. Mas é desse jeito que se constrói um estilo, seja o de Godard, Hawks, Woody Allen ou qualquer outro cineasta; ganhando-se de um lado e perdendo-se do outro. E o público que decida o quanto de cada coisa está disposto a ver.
B) Os Temas
Juntando-se a essa forma de encadeamento “dialético” através da confrontação de elementos visando novos sentidos, o outro modo que Godard usa para dar unidade ao filme é o de usar temas que se repetem circularmente ao longo dos elementos da narrativa. Alguns deles remetem a referências dos mais variados tipos.
Referências Eruditas
Alissa, no primeiro segmento, lê o livro “A Porta Estreita” de André Gide e Florine, no segundo segmento, lê o livro “Ilusões Perdidas” de Balzac. Se o espectador tiver consciência de que no livro “A Porta Estreita”, a personagem principal chama-se Alissa e que em “Ilusões Perdidas” há uma personagem chamada Florine e fizer relações entre os personagens de Godard e desses escritores, vai ser recompensado e pode tirar algumas conclusões do que a personagem cinematográfica tem a ver com a personagem literária. Do contrário, é apenas uma referência que vai parecer vazia e inútil, já que não tem valor narrativo claro dentro da história sem uma contextualização. E por que isso é bom? Mal comparando, se você pegar referências literárias em filmes como Matrix, há uma cena onde ele vê um coelho branco tatuado no ombro de uma mulher. Isso é uma referência a “Alice no País das Maravilhas”, mas é um referência que até pessoas que nunca abriram um livro na vida tem acesso, tal a popularização que esses símbolos sofreram no último século. Tudo isso é usado de uma maneira que não ultrapassa o lugar comum. Ou seja, são referências literárias para pessoas que não tem o costume de ler livros. Já as referências de Godard saem do senso comum e se tornam mais difíceis de serem compreendidas, mas mais recompensadoras e representativas de uma verdadeira cultura literária.
Referências Históricas
O “Ouro de Moscou”: durante o outono de 1936, as reservas de ouro do banco da Espanha foram transportados para Moscou. Foram transportadas de Cartagena para Odessa, em quatro navios soviéticos. Godard reescreve essa história imaginando que o ouro foi embarcado de Barcelona em 1940. Em sua chegada a Odessa o navio teria perdido uma parte de sua carga. Esse desvio misterioso de ouro é o tema que dá o contexto para o primeiro segmento de Film Socialisme. Otto Goldberg supostamente teria algo a ver com esse desaparecimento e personagens como a Major Kamenskaia e o tenente Delmas estariam investigando esse paradeiro e consequentemente Otto. Sua neta Alissa, inclusive, usa durante algumas cenas nesse primeiro segmento um colar com moedas de ouro que supostamente viriam desse desvio. Um colar que é o plano final do filme, voltando no terceiro segmento. No entanto, mais peculiaridades são adicionadas por Godard, já que em um dado momento, em um dos diálogos, ele dá a informação de que houve um desvio de ouro do Banco da Palestina, o que justificaria a presença do casal de palestinos e de um agente da Mossad. Fora o fato de que no terceiro segmento, alguns dos países que fazem parte das relações que serão tecidas, estão aí claramente por sua relação com essa linha narrativa do “Ouro de Moscou”. Se há alguma linha principal no filme, é essa.
Referências Sócio-Políticas
Godard já vem fazendo destacado papel de advogado da causa palestina desde “Ici et alleurs” (1976), portanto não é novidade ver ele colocar no filme várias referências sobre os conflitos relacionados com a causa Palestina.
Além disso, considerando a fauna cosmopolita que abunda o convés do navio Costa Concordia, a opinião de Godard sobre os Estados Unidos, Israel e outros países acaba se revelando através de personagens variados que possuem nacionalidades distintas, como o alemão Otto, os garçons orientais e árabes, o agente da Mossad, o casal palestino, a cantora Patti Smith e outros.
OBS: O rol de temas não pára por aí. Aliás, o que não falta nesse filme são temas. Eu apenas acho desnecessário especificar mais, já que o eixo desse texto é sobre a unidade estrutural/narrativa do filme e comentar os temas foi feito mais para ilustrar o modo pelo qual Godard coloca-os neste filme.
C) Conclusão: Universo ou Material Poético
Godard, nesse caso, coloca um problema muito grande para os analistas dos seus filmes já que este é ainda mais digressivo que os últimos que fez. Basicamente, ele não desenvolve intensivamente nenhum dos temas que coloca em Film Socialisme. O mais importante não é uma linha principal e sim o fato de que o universo que ele está representando é composto de uma infinidade de componentes. É a intersecção entre esses componentes que compoem a totalidade da obra e de sua visão sobre os assuntos abordados. É como se o seu, digamos assim, “objeto de estudo”, fosse um sistema complexo onde entram: coisas catalogadas (o relógio, as inúmeras câmeras fotográficas), comentários sobre a situação política de países do mundo (a questão palestina, o papel da Europa e dos Estados Unidos nesse começo de século XXI), situações representativas e conflituosas de um estado de crise (Um ex-nazista solto no navio, podendo ter relação com o paradeiro do “Ouro de Moscou”), a contraposição entre passado e presente (as escadas de Odessa segundo Eisenstein e as escadas de Odessa como atração turística), comentários sobre a linguagem e sua relação com esse “estado de coisas” (Florine: “ (...) não empreguem o verbo ser, por favor”), as inúmeras referências ao cinema (de Antonioni a Jean-Daniel Pollet, passando por Rossellini), as inúmeras referências a animais (burro, lhama, coruja, papagaio) e outros temas que tenham me escapado. O que se revela é uma ânsia mimética e representativa que muitas vezes só poderia ser obtida num filme em que o lado narrativo tivesse menos desdobramentos. Do contrário, o filme correria o risco de se tornar inflado e saturado demais de “coisas” e “substantivos” sem que a articulação entre os mesmos tivesse algum sentido (para falar a verdade muita gente já acha que esse filme não tem sentido). Nesse ponto, o fato de Godard ter colocado legendas que dão prioridade a coisas e substantivos sem que haja uma sintaxe clara entre eles (os navajo subtitles), revela-se bastante coerente com todo o projeto.
P.S. para quem não é crítico ou estudante de cinema: Eu discordo de quem acha que para se gostar de um filme, seja ele qual for, do mais simples ao mais complicado, uma pessoa precisa “entendê-lo” inteiramente, em todos os seus símbolos, referências, contextos e etc. etal. Mesmo filmes clássicos possuem inúmeras dificuldades referentes a elementos específicos da época em que foram feitos ou em relação aos “pilares” literários e cinematográficos aos quais fazem referência ou se contrapoem. Dizer que uma pessoa só vai gostar de um filme do Godard depois que todos esses “mistérios e enigmas” forem solucionados, na minha opinião, é um erro, já que as pessoas são conquistadas por um filme muito mais por momentos do que pelo todo. Se há uma única cena que a pessoa gosta, pode ser que ela fique com esse filme na sua memória pelo resto da vida. Por isso dou menos importância a “decifrar” um filme de Godard do que a revelar seu método, já que é através dos elementos contidos no método que a pessoa vai se deixar atrair e achar interessante o que ele faz. E se não se atrair por isso, muito dificilmente ela vai se atrair quando todos os “enigmas” estiverem solucionados e esquadrinhados (mesmo por quê alguns dos “enigmas” são propositadamente ambíguos e sem solução, o importante é o efeito que eles causam). É você gostar do filme que o fará ir atrás de um maior conhecimento sobre ele e não o contrário. A não ser que você seja crítico de cinema, mas aí trata-se de uma raça completamente à parte da Humanidade em geral então nem vou entrar no mérito da questão.
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