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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Sobre Conflito - Laranja Mecânica (1971) de Stanley Kubrick


Roteiro de Stanley Kubrick baseado no romance de Anthony Burgess

*Contém SPOILERS de Laranja Mecânica (1971)

Algumas pessoas dizem que o conflito é um problema que o personagem ou os personagens tem que enfrentar. Outras dizem que está ligado ao que o personagem vai ter que fazer. Não nego isso, no entanto, às vezes o real significado dessas definições é elástico. Em alguns filmes é mais importante identificar a "raiz" de todos os conflitos do que os conflitos em si.

Se pegarmos Laranja Mecânica e vermos através desse ponto de vista, Alex, o protagonista, não parece querer nada de objetivo. Sim, ele comete roubos e estupros, mas fazem parte de uma vontade mais profunda de "afirmar sua personalidade" e não que ele ache o dinheiro ou o estupro as coisas mais importantes do mundo.

Vou dividir o filme em 5 partes para analisar melhor:

1-Alex, o protagonista, é apresentado como o líder de uma gang que comete atos criminosos. A variedade de crimes vai do vandalismo ao estupro.

2-Depois, enfoca-se o fato de que seu comportamento anti-social se estende até para seus colegas de gang, o que causa a revolta interna no grupo. Eles acabam por traí-lo, o que o leva para a prisão.

3-Na prisão ele se insere em um experimento do Estado onde através de métodos de coerção, a "cobaia" (no caso, ele), vai ter sua personalidade transformada. Toda vez que pensar em cometer atos criminosos, vai sentir-se mal.

4-Finalmente, quando colocado em liberdade, Alex reencontra as pessoas que maltratou no começo do filme (pais, colegas da gang, o homem do casal cuja mulher foi estuprada). Consequentemente, quando eles o tratam muito mal, Alex não consegue se defender. Desesperado com sua nova situação ao mesmo tempo que é torturado por uma de suas vítimas, Alex tenta o suicídio.

5-No epílogo, para que o experimento não seja exposto ao ridículo, o Ministro concede benefícios a Alex e seus pais aceitam-no de volta para casa. No último plano do filme o público descobre que a "programação" que lhe foi inculcada, depois de tudo o que aconteceu, acabou por ser destruída e agora ele voltou a ser o mesmo desequilibrado de sempre. O experimento do Estado não só não deu certo como resultou em vantagens para Alex, um potencial criminoso que continua solto.

Se formos pela definição que coloca o "problema" do protagonista como o conflito, os problemas externos de Alex começam quando ele se vê questionado em sua liderança por um de seus "colegas". O modo como ele trata a questão, através da violência e do desprezo para com os envolvidos, leva-o a uma traição futura, que acaba colocando-o na prisão.

Há uma progressão do conflito e o problema principal do filme se revela através da tentativa do "sistema" de mudar completamente a personalidade de Alex através de métodos pretensamente "científicos". A experiência é bem sucedida no começo, mas tudo complica quando ele volta para a sociedade e seus atos criminosos recebem o inevitável troco das pessoas que ele maltratou anteriormente. Sem que ele possa fazer nada, uma espiral de violência é criada a ponto de fazer com que, no final, ele acabe por pular de uma janela, quase se suicidando, ao tentar escapar da loucura em que se meteu. Sendo assim, na segunda metade do filme ele mais sofre do que age por si próprio.

No entanto, qual a "raiz" do problema?

No começo, Alex mostra uma personalidade violenta e de indiferença com o próximo que se aproxima da psicopatia. A afirmação desse traço de caráter, portanto, é algo difícil de ser sustentado. Vendo em retrospecto, ao maltratar pessoas no começo do filme, ele está plantando as sementes do modo como será tratado na segunda metade da história. Ou seja, desde o começo, mesmo na apresentação do personagem, vê-se que o conflito de Alex é antes de mais nada esse seu traço de caráter que não o abandona. E logo na sequência, percebe-se que esse mesmo traço despertou conflito com os outros membros da gang.

Isso vai atirá-lo em um conflito maior, quando a sua gang o trair. Alex estava em um meio onde a afirmação de sua personalidade era apenas algo pelo qual ele tinha que lutar. Agora, Alex vai passar para um meio cujo único objetivo é a "reconstrução" de sua personalidade, suprimindo sua vontade de querer bangunçar e anarquizar tudo e a todos, ou seja, sua principal característica.

Num primeiro momento, a experiência é bem sucedida, ou seja, a cada possibilidade de que sua personalidade se engage em desejos e ações violentas, Alex sente-se mal, levando-o a desistir de seus intentos.

No entanto, ao sair do ambiente controlado e cair nas ruas, onde é desprezado pelos pais e pelo novo inquilino, surrado pelos seus ex-colegas de gang que se tornaram policiais e torturado psicologicamente pelo homem do casal cuja mulher ele estuprou, a situação se torna mais complexa. A violência não está só nele, mas também nas outras pessoas da sociedade em que ele vive e mais ainda, no Estado, cuja única solução em relação a esse problema passa pela total supressão do lívre-arbítro e da liberdade das pessoas e não por uma reeducação ou punição dos envolvidos.

Ao tornar um delinquente que não se redime o protagonista de sua história, Kubrick dá a entender que apesar de ser um criminoso, Alex não é o grande vilão do filme e sim o Estado, que não só não resolve os problemas, mas oculta-os para que os burocratas que movimentam essa máquina não sejam questionados nem afastados de suas posições por ações completamente irresponsáveis, causando com isso, no final das contas, resultados muito mais nefastos do que as ações criminosas de um só homem.

Ou seja, o conflito principal não se sustenta através de objetivos materiais, como obter coisas e conseguir prêmios. E nem com lutas com objetivos únicos e claros como muitas vezes o cinema clássico e o cinema contemporâneo comercial costumam fazer. Sustenta-se através de problemas externos causados por um traço de personalidade do protagonista.

Esse traço de caráter é incômodo. Causa problemas com os outros personagens e faz com que um antagonista (o Estado) tente suprimí-lo. No final, o Estado falha. Mas o protagonista vencer não significa que a história acabou bem e sim que o efeito de sátira foi atingido, já que nenhum dos dois lados consegue empatia total com a maioria dos espectadores.

Quando, no final, Alex recebe do Ministro uma nova chance, o círculo se completa. Não só ele conseguiu vantagens do governo, como o mesmo não conseguiu mudar sua personalidade em nada. Ou seja, o fracasso total do experimento e a volta da personalidade de Alex direto para o ponto onde estava no começo do filme mostra que de alguma forma, sua vontade inata de fazer prevalecer seu principal traço de personalidade, sua tendência a ser um bagunceiro anárquico que comete crimes, acabou por vencer.

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