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segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Sobre Coincidências na Estrutura Narrativa - Pulp Fiction (1994) de Quentin Tarantino


Roteiro de Quentin Tarantino baseado em histórias de Quentin Tarantino e Roger Avary

*Contém SPOILERS de Pulp Fiction (1994)

Você tem aquela velha história onde o mocinho e o vilão estão prestes a atirar um no outro.

Na primeira opção, o vilão está com a vantagem. Está prestes a atirar no mocinho. E, de repente, a arma trava. O mocinho pula no vilão e o desarma, vencendo a luta. Isso não é muito legal para a história.

Na outra opção, é o mocinho quem está com a vantagem. Ele aponta a arma para o vilão. O mocinho não atiraria, mas o vilão, no entanto, pula na direção do mocinho mesmo assim. O mocinho vai atirar para se defender, mas a arma trava. O mocinho se encrencou. Já é um pouco melhor.

O fato é que tendemos a aceitar melhor as coincidências dentro de um filme quando criam novos conflitos do que quando elas são usadas para resolver problemas de narrativa que parecem ter uma difícil solução. Resumindo, uma coincidência que ajuda o protagonista parece um handicap. Já uma coincidência que prejudica o protagonista e/ou se transforma num atiçador de conflitos, torna-se mais fácil de ser aceita dentro da história.

O que o público não gosta não é da coincidência e sim da coincidência usada como método fácil de resolução de problemas do roteiro.

Pulp Fiction é um exemplo nesse quesito. O filme está atulhado de coincidências. Muitas delas se mostram bastante arbitrárias. No entanto, nenhuma é usada para resolver problemas de roteiro. Todas são usadas para CRIAR problemas no roteiro que depois serão solucionados com maestria.

A coincidência mais determinante é uma variação do clichê que coloquei acima, onde o vilão vai atirar no mocinho e a arma trava. Nesse caso, a arma não trava e o vilão atira várias vezes, mas Jules e Vincent não sofrem nenhum arranhão. No entanto, esse fato do vilão atirar e errar seguidas vezes de uma distância pequena se transforma num dos grandes conflitos da história, quando Jules começa a pensar em como nenhuma das balas o atingiu. Ou seja, uma obra do acaso cuja probabilidade é mínima de acontecer se torna uma alavanca para que Jules mude de vida no final do filme.

Outra coincidência que prejudica os protagonistas é a maneira pela qual as drogas entram na história de Vincente e Mia. Vincent vai ao seu fornecedor de drogas favorito. Supostamente, as drogas são para dar prazer a ele e/ou a Mia. Mas é justamente esse elemento - que entra sutilmente na história - que vai causar o maior conflito dramático desse episódio do filme, quando Mia sofre uma overdose.

No episódio de Butch, o mesmo sofre três coincidências, uma em seguida da outra, que só fazem aumentar o conflito dramático. A primeira acontece quando ele volta para seu apartamento em busca do relógio de seu pai. Por coincidência, Vincent estava no banheiro naquela hora. E deixou sua sub-metralhadora na sala.

Em seguida, quando Butch já está em fuga, depara-se com Marcellus Wallace, seu perseguidor, passando na sua frente, levando comida nas mãos, na faixa de pedestres. Uma citação de Psicose. Qual a probabilidade de uma coisa dessas acontecer?

E por fim, quando Butch e Wallace travam um duelo no meio da rua e Butch foge, o local onde tanto ele quanto Wallace vão parar é um covil de torturadores "caipiras", que guardam no porão um "escravo S & M", prontos para cometer atos escabrosos, como violentar negros.

A pouca probabilidade desses três acasos acontecerem (e mais, um atrás do outro) é minimizada por quê a cada virada ficamos querendo saber "o que vai acontecer?" Ou seja, se o conflito criado é interessante (e possui um mínimo de verossimilhança), a "suspensão da descrença" aumenta.

Na história seguinte, quando o carro de Vincent e Jules passa por um buraco, Vincent aperta o gatilho e acaba por matar Marvin, o informante. De novo, sem querer. Isso cria um conflito que irá determinar o episódio inteiro, já que eles não podem andar por aí com o carro sujo de pedaços de Marvin por aí.

No final, Jules e Vincent, já depois da sessão de "limpeza" empreendida e comandada pelo Lobo de Harvey Keitel, vão para uma lanchonete tomar o café da manhã. Essa lanchonete está prestes a ser assaltada por dois ladrões "pé-de-chinelo", que irão colocar em questão a dúvida de Jules de continuar a ser um gangster ou virar um "pastor".

Os dois ladrões já haviam aparecido no prólogo do filme, mas o público não sabia como essa parte iria se juntar com o resto do filme, até agora. O primeiro acaso se junta com o último acaso e é através disso que o filme vai chegar a uma resolução.

O uso das coincidências por Tarantino denota um método de construção dramática específico desse roteirista-diretor, mas inevitavelmente deixa transparecer uma visão de mundo também, que é calcada em coincidências colocadas estrategicamente dentro de uma história para causar surpresas e revelações. Mas são coincidências que acirram os conflitos e não que os resolvem quando o roteirista e/ou diretor se deparam com um problema de roteiro difícil de ser solucionado.

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