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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Sobre Trama - A Marca da Maldade (1958) de Orson Welles


Roteiro de Orson Welles baseado no romance "Badge of Evil" de Whit Masterson com contribuições não creditadas de Paul Monash e Franklin Coen

*Contém SPOILERS de A Marca da Maldade (1958) de Orson Welles

Para se escrever a trama de um filme é preciso saber, dentro do conflito principal delineado, que tipo de "interação" haverá entre os personagens e também o tipo de "tarefas" a serem executadas pelos mesmos.

Isso por que independente do conflito principal, a trama de um filme é composta pela soma das "interações" dos personagens e pelas ações (não ações abstratas e sim "tarefas", ações concretas, mesmo que seja ficar parado) que esses personagens promovem. Ou seja, se o conflito de um personagem é "ficar rico", você não vai ver isso na trama de um filme, vai ver ele "ir até o jockey club", "apostar um monte de dinheiro no guichê" e em seguida, "sentar-se em um banco", de onde irá "ver a corrida." E assim por diante, até a corrida ser ganha e ele dançar sobre o banco só de cueca, por que finalmente o personagem ficou rico. Mas só teremos a confirmação quando ele for retirar o dinheiro. Ou quando comprar um iate. Ou quando falar para outro personagem o que aconteceu. Ou... acho que já deu para entender o que eu quis dizer... o que aparece no filme são coisas concretas ("interações" e "tarefas") e não conflitos gerais ou abstratos.

Voltando a "A Marca da Maldade": o conflito inicial baseia-se no carro que explode logo no começo e na suspeita de que Manelo Sanchez, namorado da filha do morto, é o autor do atentado. Em tese, o filme tratará da investigação que Vargas e Quinlan levarão adiante tendo Manelo como principal suspeito. Mas a trama nos leva para outro lugar. Não é esse o foco principal proveniente das "tarefas" e "interações" presentes no filme. O conflito inicial é modificado pelo verdadeiro caminho que a história (e Welles) querem trilhar. Que é a briga entre Quinlan e Vargas. E a inevitável "queda" de Quinlan, amparado por uma pletora de personagens coadjuvantes importantes para a construção da trama.

Nos primeiros quinze ou vinte minutos, diversas linhas narrativas são abertas. Primeiro, a investigação da morte de Linnekar por Vargas e Quinlan. Uncle Joe Grandi importuna Susan, mulher de Vargas, e mostra que está atrás do policial mexicano que prendeu seu irmão. Quinlan e Vargas, policiais da fronteira, um do lado americano e o outro do lado mexicano, se estranham de começo, dando a entender que a investigação será difícil. Quinlan visita Tanya, a dona da pensão/cabaré/puteiro da fronteira e mostra que ele tem uma relação obscura e mal esclarecida com ela. Para completar, o sobrinho de Uncle Joe atira ácido em Vargas, sem o conhecimento de seu tio.

Para um filme da época, a quantidade de "interações" significativas (ou seja, que subentendem algum tipo de conflito) é muito grande e desorientadora, embora hoje em dia seja mais fácil para o público deglutir tudo de uma vez, já que os filmes não tem tanta "apresentação" como nos anos 50. O problema não é o número de personagens e sim o fato de todos eles terem uma "agenda" ainda desconhecida do público (já que o filme acabou de começar), levando a uma certa desorientação em relação a qual, afinal de contas, é a linha narrativa principal da trama e o que todos esses personagens tem a ver com ela.

O que esse filme mostra é que à medida que as "tarefas" e "interações" forem se desenrolando, a trama irá tomando uma forma própria, que se distancia em muito da forma que originariamente você pode ter pensado que ela teria, já que é possível desenvolver o mesmo conflito de milhões de maneiras diferentes.

Resumindo, o conflito inicial nos dá a impressão de que a história vai tratar principalmente da resolução do assassinato de Linnekar, mas aos poucos desemboca no conflito entre Quinlan e Vargas, já que Quinlan usa de métodos ilegais para incriminar as pessoas que ele acredita serem culpadas. No meio desse problema estão a família Grandi, Susan e Peter (parceiro de Hank Quinlan). Os Grandi e Susan serão usados por Quinlan para incriminar Vargas, enquanto Peter será cooptado por Vargas para que ele consiga provar sua inocência e a culpa de Quinlan.

Grande parte da modernidade de "A Marca da Maldade" (e do seu fracasso na bilheteria) nasce de Welles ter colocado na trama elementos bastante dissonantes (para a época) com o que se delinou no começo do conflito. A trama parece menos "integrada" ao conflito aparentemente principal (quem matou Linnekar?) e o mesmo se resolve de forma quase banal, como se fosse um acessório do conflito entre Vargas e Quinlan. Por que na verdade, para o verdadeiro objetivo de Welles, a ideia era essa mesma.

Dado esse interesse em "maximizar" os personagens coadjuvantes, um exemplo claro acontece quando o filme se detém durante muito tempo em um entrecho relativo a mulher de Vargas, Susan, que vai se refugiar em um motel e é pega pelos homens de Grandi, que a drogam e supostamente promovem uma "orgia" de sexo e drogas (orgia de cinema americano dos anos 50, onde ninguém fica pelado e não há nada relativo a sexo). Depois a colocam num quarto de hotel para acabar com sua reputação e a de Vargas. Num outro filme essa sequência poderia ter durado muito menos, mas Welles força um certo tipo de "descentralização" da trama principal, embora a trama principal exista (falei isso só para deixar claro que não se trata de um multiplot).

Mesmo em relação aos enquadramentos e a decupagem, certos elementos que em outros filmes da época seriam cortados acabam entrando no filme, com efeitos desconcertantes. Como quando Vargas telefona para Susan perto do local onde Manelo está sendo interrogado (e incriminado) por Quinlan. Em um dado enquadramento, Vargas fala ao telefone, mas a figura mais visível na tela é a de uma mulher de aparência estranha, parada, esperando ele terminar a chamada. É a atendente ou dona do local de onde Vargas está telefonando. A mulher não irá aparecer mais em cena e sua aparição não tem função narrativa clara. Ou seja, o "método" Wellesiano é usado tanto no modo de lidar com as linhas narrativas quanto na mise-en-scène, revelando um ponto de vista, uma visão de mundo. E é daí que a aparição dessa mulher tira seu significado.

A "descentralização" vai se prolongar até mais da metade do filme, até o momento em que as linhas se juntarem mais ordenadamente. O importante, no caso, é frisar que não precisamos desenvolver o conflito inicial de um filme do jeito que "parece" que ele tem que ser desenvolvido. O desenvolvimento tem que simplesmente satisfazer a agenda do autor do filme (seja o roteirista, o diretor ou os dois) e isso só será feito se o autor se preocupar não só com os conflitos gerais e sim em como as "tarefas" e "interações" presentes no filme o levarão para onde ele quer ir. O aspecto mais abstrato (conflitos gerais) e o concreto ("interações" e "tarefas") precisam se misturar de forma homogênea para que a narrativa funcione.


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