Páginas

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Sobre Construção de Sequência - Frenesi (1972) de Alfred Hitchcock


Roteiro de Anthony Schaffer baseado no romance de Arthur La Bern

*Contém SPOILERS de Frenesi (1972) de Alfred Hitchcock

"Leda e o Cisne" é um mito que se fundamenta em cima de um estupro, cometido por Zeus, tendo Leda como vítima. Seja nas pinturas de Leonardo, Rubens e Dali ou no poema de Yeats, a força poética encontrada por esses artistas em tal evento fizeram com que ele encontrasse seu lugar na História da Arte. Na História do Cinema, os estupros também não são poucos e só de relance poderia citar Monica Belucci no "Irreversível" de Gaspar Noé, Jennifer Jason Leigh em "Noites Violentas do Brooklyn" ou mesmo os garotos vitimados pelos nazistas em "Saló". No entanto, curioso que o estupro, nesses e em outros filmes, é visto do ponto de vista de quem estupra ou de quem vê o estupro e não de quem, de fato, sofre a violência. As vítimas tornam-se pedaços de carne pendurados na vitrine de um açougue, esperando o término da cena.

A vítima está sempre desacordada, em estado de choque, bêbada ou enlouquecida... de um jeito ou de outro, sua faculdade mental está sempre a zero, como se a mesma fosse um pedaço de madeira ou uma garrafa de água mineral. Ou seja, uma pessoa estuprada deixa de ser uma pessoa e o público, ao ver um estupro, se limita a "ver um estupro", e não a ver uma pessoa sendo estuprada. No primeiro caso, o estupro se torna uma "questão", um "problema" e a pessoa um receptáculo para elocubrações que a cena possa suscitar em volta do tema "estupro". Tentando fazer "pensar", os cineastas alienam seu público daquilo que poderia fazer com que ele realmente sentisse algo, cortando qualquer tipo de identificação com a vítima.

Para causar asco no público e assim mostrar que são cineastas conscientes e responsáveis, satiristas privilegiados de um mundo podre, os estupros e a violência são mostrados de forma lenta, extensiva e cada vez mais explícita. Já que o "mundo é assim", a única coisa que pode ser feita para aumentar o choque é o aumento da violência e o aumento da duração da violência. No entanto, não acho que isso por si só diminui o valor da cena. O que diminui o valor da cena é colocar em foco o "ato" e não o que o "ato" representa, negligenciando assim as reverberações provocadas na vítima e dentro da cena.

Esquecem que à partir do momento em que um estupro é apenas um estupro, ele deixa de ter sentido, da mesma forma que os dois corpos envolvidos tornam-se, envoltos por esse caráter falsamente "consciente" e "didático" da mise-en-scène e/ou do roteiro, apenas uma pilha de carne se movimentando de forma desagradável. E ao fazer isso, o cineasta aumenta o grau de alienação do espectador, que continua a não sentir nada pelo que aconteceu, mas tem a estúpida impressão de que, ao ser brutalizado pelo cineasta, tornou-se mais inteligente e "consciente", já que o cinema passou para ele uma sensação desconfortável, que é mais ou menos como ele deveria se sentir ao ver um estupro... no cinema. Por sentir-se "mal", torna-se melhor, como se o espectador fosse o personagem Alex do filme Laranja Mecânica de Kubrick, no qual o Estado quer, de qualquer jeito, torná-lo um cidadão-modelo. Se o Estado for substituído por cineastas de esquerda, você chegou perto de onde esse tipo de cinema quer chegar. É a consciência culpada e o carolismo elevados ao status de arte.

Vejamos então o que Hitchcock fez em Frenesi. A sequência tem aproximadamente dez minutos.

1-Bob Rusk entra furtivamente no escritório de Brenda, dona de uma agência de encontros amorosos. Insatisfeito com os serviços da agência, tomamos consciência que ele tem "gostos particulares" e que nenhuma das mulheres ao qual foi apresentado proporcionou-lhe um "final feliz". Brenda, nesse momento, passa uma grande segurança e auto-controle.

2-Rusk se irrita, forçando Brenda a verbalizar que um homem como ele tem poucas chances de conseguir uma mulher em sua agência. Vendo que só lhe resta desistir, Rusk diz que está atraído por Brenda. Através de um olhar, revela-se o medo que ela tem dele, medo que até agora não havia sido externado. Rapidamente, vamos do medo ao desespero. Assustada, ela tenta chamar a polícia, mas é interrompida por Rusk. Primeiro, ele parece querer mantê-la cativa no escritório, mas em seguida a convida para almoçar. Esperançosa e ansiosa para ir num lugar onde outras pessoas possam salvá-la, Brenda aceita o convite. Mas Rusk muda de idéia, prensando-a contra a parede.

3-Com a força de Rusk, Brenda desmaia momentaneamente. Ele a coloca no sofá. Ela lhe dá um chute no estômago e tenta fugir, mas é pega pelo tornozelo, caindo ao chão. Rusk a coloca no sofá e, já possesso, rasga a roupa de Brenda, deixando seus seios expostos.

4-Enquanto Bob a estupra, Brenda recoloca o seu soutien e, certa que do estupro não poderá escapar, reza, totalmente impassível, como que tentando se distanciar. Depois de a estuprar, Rusk não se acalma: chama-a de puta e tira a gravata. Agora, Brenda descobre aonde tudo isso irá parar. Rusk é o "assassino da gravata". Desesperada, ela sai de seu catatonismo e grita, mas é tarde demais. Com a gravata em seu pescoço, sua cabeça se mexe de um lado para o outro e suas mãos aproximam-se da gravata, sem, no entanto, alcançar objetivo algum. Os olhos, aos poucos, param de se movimentar definitivamente.

5-Bob Rusk, exausto e atordoado, se afasta do corpo de Brenda. Com a língua de fora (dada a violência do estrangulamento) e a gravata de Rusk apertada em volta do pescoço, Brenda tornou-se um reflexo grotesco de si mesma. Depois de dar uma mordida em uma maçã, o assassino sai do local ainda sem a completa noção do que acabou de fazer.

Nessa sequência, Brenda vai da firmeza para o medo e o desespero em segundos. Anseia e espera o melhor até ser prensada e desmaiar. Toma atitudes agressivas e é oprimida, até o desespero ser tão grande que a leva a aceitar o estupro para proteger a vida, sem saber que perder a vida seria o último ato do ataque sofrido, ataque lento e cadenciado, recheado de detalhes intermináveis. A quantidade de reações e pequenas mudanças psicológicas de Brenda deixam-na como foco da cena e disso nasce a sua diferenciação em relação a multidão de mulheres estupradas em outros filmes. O momento em que ela reza, impassível, ao mesmo tempo em que Bob a estupra, é antológico.

O estupro em Frenesi, desse ponto de vista, é o único estupro verdadeiro da História do Cinema, já que Brenda Blaney nunca perde a sua individualidade, durante toda a Via Crucis patética e dolorosa que percorre. Brenda Blaney não é um pedaço de carne. E o estupro não é apenas um estupro. É o momento em que finalmente Brenda se mostra inteiramente no filme, com uma complexidade de comportamento que ainda não havia sido atingida. Sai a chave sócio-política e entra a chave moral, metafísica e mítica, que os críticos da Nouvelle Vague tanto gostavam em Hitchcock. E que no momento está inteiramente esquecida, soterrada por décadas de "conscientização" e didatismo "brechtiano" mal assimilado.

Comparado com as cenas dos filmes citados, o estupro de Brenda Blaney é o "Juízo Final" da Capela Sistina... por que dessa vez estamos juntos da mulher que é violada, brutalizada e por fim, assassinada. Uma mulher que pensa, age e até o último momento tem esperança de se livrar do seu tormento. Para falar a verdade, isso nem "Leda e o Cisne" nos proporcionou. Nós estamos ao lado da vítima, sofrendo com ela, e não como brutalizadores de má consciência, que choram ao mesmo tempo em que lambem os beiços... nunca a brutalidade do homem para com a mulher foi colocada de forma mais clara e marcante. E os cultores da violência ou da "reeducação comportamental" nunca entenderão o porquê dessa ser uma das sequências mais assustadoras da História do Cinema, já que querem vencer pelo excesso de violência transformado em "tema para debate" e não pela identificação com o violado.

Ao mesmo tempo, de Brenda vimos o que precisávamos ver, um comportamento rico em detalhes, revelando o quanto Bob, apesar de ser mais agressivo e "dominante" na cena, mostra-se mais limitado e menos passível de identificação. O violador torna-se, por um momento, coadjuvante de sua vítima, vítima esta que só tende a aumentar de tamanho à medida que os anos passam, subindo de importância no filme e fazendo o status do mesmo crescer e muito dentro da filmografia de Alfred Hitchcock.

Nenhum comentário:

Postar um comentário